quinta-feira, 17 de março de 2011

O Despertar dos Mágicos (30). E se a própria Terra não fosse real sob esse ponto de vista?


O nosso amigo acabava de ler Fort quando nos apresentou esta farsa genial: Em termos metafísicos, diz Fort, creio que tudo a que vulgarmente se chama existência, e a que eu chamo caráter intermédio, é uma quase-existência, nem real, nem irreal, mas a expressão de uma tentativa para atingir o real ou uma existência real.

Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL

Esta empresa não tem precedentes nos tempos modernos. Anuncia a grande transformação da estrutura do espírito que as descobertas de certas realidades físico-matemáticas atualmente exigem. Ao nível da partícula, por exemplo, o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos. Há equações a um tempo verdadeiras e falsas. A luz é simultaneamente contínua e irregular.
Aquilo a que se chama Ser é o movimento: nem todo o movimento é a expressão de um equilíbrio, mas de uma tentativa de equilíbrio ou do equilíbrio ainda não atingido. E o simples fato de ser manifesta-se no caráter intermediário entre equilíbrio e desequilíbrio. Isto data de 1919 e lembra as reflexões contemporâneas de um físico biologista como Jacques Ménétrier sobre a inversão da entropia. Todos os fenômenos, no nosso estado intermédio ou quase-estado, representam uma tentativa para a organização, a harmonização, a individualização, quer dizer, uma tentativa para atingir a realidade. Mas toda a tentativa é levada a uma situação crítica pela continuidade, ou pelas forças exteriores, pelos fatos excluídos, contíguos aos inclusos. Isto antecipa uma das operações mais abstratas da física quântica: a normalização das funções, operação que consiste em estabelecer a função que descreve um objeto físico de tal forma que haja uma possibilidade de reencontrar esse objeto no Universo inteiro.
Concebo todas as coisas como ocupando gradações, etapas seriais entre a realidade e a irrealidade. É a razão por que, para Fort, pouca importância tem apoderar-se deste ou daquele fato para começar a descrever a totalidade. E por que motivo escolher um fato tranqüilizador para a razão, em vez de um fato perturbante? Por que motivo excluir? Para calcular um círculo, pode começar-se não importa onde. Ele assinala, por exemplo, a existência de objetos voadores a partir dos quais se pode começar a apreender a totalidade. Mas, diz ele logo em seguida, uma tempestade de pervincas teria a mesma utilidade.
Não sou um realista. Não sou um idealista. Sou um intermediarista. Se nos opomos à raiz da compreensão, à própria base do espírito, como nos poderemos fazer compreender?
Por uma aparente excentricidade que é a linguagem-choque do gênio verdadeiramente centralista: procura as suas imagens tanto mais longe quanto está certo de as reconduzir ao ponto fixo e profundo da sua meditação. De certo modo, o nosso camarada Charles Hoy Fort procede à maneira de Rabelais. Faz um alarido de humorismo e de imagens capaz de acordar os mortos.
Coleciono notas sobre todos os assuntos dotados de qualquer diversidade, como seja os desvios da concentricidade na cratera lunar Copérnico, a súbita aparição de Britânicos cor de púrpura, os meteoros estacionários, ou o súbito nascimento de cabelos sobre a cabeça calva de uma múmia. No entanto, o meu maior interesse não tem como objeto os fatos, mas as relações entre os fatos. Meditei muito a respeito das supostas relações a que chamamos coincidências. E se não houvesse coincidências?
Outrora, quando eu era um doidivanas especialmente perverso, condenavam-me a trabalhar ao sábado na loja paterna, onde era obrigado a raspar as etiquetas das latas de conservas concorrentes para nelas colar as dos meus pais. Um dia em que dispunha de uma autêntica pirâmide de conservas de frutos e de legumes, só me restavam etiquetas de pêssegos. Colei-as sobre as latas de pêssegos, até que cheguei às de damascos.
E pensei: os damascos não serão pêssegos? Nessa altura comecei, por brincadeira ou cientificamente, a colar as minhas etiquetas de pêssegos sobre as latas de ameixas, de cerejas, de feijões e de ervilhas. Por que motivo? Ignorava-o então, pois ainda não decidira se era um sábio ou um humorista.
Surge uma nova estrela; até que ponto ela se diferencia de certas gotas de origem desconhecida que acabam de ser descobertas sobre um algodoeiro do Oklahoma?
Tenho neste momento um espécime de borboleta particularmente ruidoso: uma esfinge com cabeça de morto. Guincha como um rato e o som parece-me vocal. Dizem da borboleta Kalima, por ela se assemelhar a uma folha seca, que imita a folha seca. Mas a esfinge com cabeça de morto será que imita as ossadas?
Se não existem diferenças positivas, não é possível definir seja o que for como positivamente diferente de outra coisa. O que é uma casa? Uma granja é uma casa, contanto que lá viva alguém. Mas se a residência constitui a essência de uma casa, mais do que o estilo da arquitetura, então um ninho de ave é uma casa. A ocupação humana não estabelece o critério, visto que os cães têm a sua casa; nem a matéria, visto que os esquimós têm casas de neve. E duas coisas tão positivamente diferentes como a Casa Branca de Washington e a concha de um caranguejo ermita revelam-se contíguas.
Ilhas de coral branco sobre um mar de um azul-escuro.
A sua aparência de distinção, a sua aparência de individualidade ou a diferença positiva que os separa não são mais do que a projeção do mesmo fundo oceânico: a diferença entre terra e mar não é positiva. Em toda a porção de água há um pouco de terra, em toda a porção de terra há um pouco de água. De forma que todas as aparências são enganadoras. Visto que fazem parte de um espectro comum. Um pé de mesa não tem nada de positivo, não passa de uma projeção de qualquer coisa.
E nenhum de nós é um ser, visto que fisicamente somos contíguos daquilo que nos cerca, visto que psiquicamente nada nos acontece que não seja a expressão das nossas relações com tudo o que nos cerca.
A minha disposição é a seguinte: todas as coisas que parecem possuir uma identidade individual não passam de ilhas, projeção de um continente submarino, e não possuem contornos reais.
Como beleza, designarei o que parece completo. O incompleto ou o mutilado é totalmente feio. A Vênus de Milo. Uma criança achá-la-ia feia. Se um espírito puro a imagina completa, tornar-se-á bela. Uma mão concebida sob o ponto de vista de uma mão pode parecer bela. Abandonada sobre um campo de batalha, já o não é. Mas tudo
o que nos cerca é uma parte de qualquer coisa, e esta parte de outra: neste mundo não há nada belo, só as aparências são intermediárias entre a beleza e a fealdade. Só a universalidade é completa, só o completo é belo.
O profundo pensamento do nosso mestre Fort é portanto a unidade subjacente de todas as coisas e de todos os fenômenos. Ora o pensamento civilizado do passado século XIX coloca parêntesis um pouco por toda a parte, e a nossa forma de raciocínio binária, só encara a dualidade. Eis o louco-sensato do Bronx em revolta contra a Ciência exclusivista do seu tempo, e também contra a própria estrutura da nossa inteligência. Parece-lhe necessária outra forma de inteligência: uma inteligência de certa maneira mística, excitada em presença da totalidade. A partir do que ele sugere outros métodos de conhecimento.
Para nos preparar para isso, realiza cortes, fendas nos nossos hábitos de pensamento. Atirar-vos-ei às portas que abrem para outra coisa.
No entanto, Fort não é um idealista. Ele insurge-se contra a nossa falta de realismo: recusamos o real quando é fantástico. Fort não prega uma nova religião. Antes pelo contrário, apressa-se a erguer uma barreira em volta da sua doutrina para impedir que os espíritos fracos ali entrem. Que tudo esteja em tudo, que o Universo esteja contido num grão de areia, é a sua teoria. Mas esta certeza metafísica só pode brilhar no mais alto nível da reflexão.
Não pode descer até a um ocultismo primário sem se tornar ridícula. Não poderia permitir os delírios do pensamento analógico, tão do agrado dos esoteristas duvidosos que constantemente explicam um fato com outro fato: a Bíblia pelos números, a última guerra pela Grande Pirâmide, a Revolução pela cartomancia, o meu futuro pelos astros que em tudo vêem sinais a respeito de tudo. Provavelmente existe uma relação entre uma rosa e um hipopótamo, no entanto nunca passará pela cabeça de um jovem a idéia de oferecer à noiva um ramo de hipopótamos.
Mark Twain, ao denunciar o mesmo vício de pensamento, declarava com certa graça que A Canção da Primavera pode ser explicada pelas Tábuas da Lei, visto que Moisés e Mendelssohn são nomes idênticos: basta substituir Moisés por Mendelssohn. E Charles Fort volta à carga com a seguinte caricatura: Pode identificar-se um elefante a um girassol: ambos possuem uma comprida haste. Não é possível distinguir um camelo de um amendoim, se só tivermos em conta as bossas.
Tal é o homenzinho, sólido e alegremente sabedor. Vejamos agora o seu pensamento adquirir uma amplidão cósmica.
E se a própria Terra não fosse real sob esse ponto de vista? Se não passasse de qualquer coisa intermédia no cosmos? Talvez a Terra não seja de forma alguma independente, e a vida sobre a Terra talvez não seja de forma alguma independente de outras vidas, de outras existências nos espaços.
Quarenta mil notas sobre toda a espécie de chuvas que tem caído sobre a Terra há muito que levaram Charles Fort a admitir a hipótese de que a maior parte delas não são de origem terrestre. Proponho que se admita a idéia de que há, para além do nosso mundo, outros continentes dos quais caem objetos, da mesma forma que os destroços da América vêm ter à Europa. Digamo-lo imediatamente: Fort não é um ingênuo. Ele não acredita em tudo. Apenas se insurge contra o hábito de negar a priori. Não aponta com o dedo as verdades: desfere golpes ara demolir o edifício científico da sua época, constituído por verdades tão parciais que dir-se-iam erros. Ri? É que não compreendemos por que motivo o esforço humano em relação ao conhecimento não poderia por vezes ser entrecortado pelo riso, que é igualmente humano. Inventa? Sonha? Rabelais cósmico? Ele concorda. Este livro é uma ficção, como As Viagens de Gulliver, a Origem das Espécies e, aliás, a Bíblia.

Imagem: tvcanal7.blogspot.com

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