sexta-feira, 18 de abril de 2014

Kepler 186f: Nasa descobre novo planeta que pode abrigar vida



A Agência Espacial Americana (NASA) anunciou hoje a descoberta do Kepler-186f, um planeta mais ou menos do tamanho da Terra. O mais legal é que há grandes chances de o planeta ter água em forma líquida – e, consequentemente, algum tipo de vida (da maneira como conhecemos).
No Kepler-186f, um ano dura 130 dias. O novo planeta gira em torno de uma estrela chamada Kepler-186, na constelação de Cisne, a uns 500 anos-luz da Terra. A Kepler-186 é uma anã vermelha. Estrelas dessa categoria têm menos que a metade da massa do Sol. Em sua órbita, há outros planetas além desse novo primo da Terra. Mas não há indícios de vida em nenhum deles, porque estão bem perto da estrela, onde é quente demais.
Planetas que orbitam em torno de estrelas fora do Sistema Solar não são novidade na astronomia. Só em zonas habitáveis, regiões onde as condições para a vida são mais favoráveis, há pelo menos 20 planetas já conhecidos. Mas, em comparação com outros, o Kepler-186f está em vantagem: não está nem muito perto, nem muito longe de sua estrela (assim como a Terra). O tamanho também conta. Planetas muito grandes normalmente são feitos de gás, como Júpiter. E, para os cientistas, é bem mais provável que exista vida em planetas sólidos. O Kepler-186f é só 10% maior que nós e, ao que tudo indica, também é rochoso.
Calma, não estamos nem perto de viajar até o planeta para confirmar nossas suspeitas. Acontece que essa suspeita já é muita coisa. De todos os planetas de dentro e fora do Sistema Solar, só 4 são notadamente feitos de “pedra” (Mercúrio, Vênus, Marte e Terra). Com o Kepler-186f, são 5. O problema é que, segundo a astrônoma Elisa Quintana, vai ser bem difícil conseguir mais detalhes sobre o nosso novo primo. “A luz da estrela é muito fraca para novos estudos, mesmo com grandes telescópios de última geração”, diz a cientista, que trabalha com pesquisas do telescópio Kepler no Instituto SETI (sigla em inglês para “busca por inteligência extraterrestre”).
Clique para assistir ao vídeo
Imagem: Foto: NASA/Ames/JPL-Caltech

terça-feira, 15 de abril de 2014

Apartamento luxuoso fechado há mais de 72 anos é encontrado intocado em Paris






Estava fechado desde 1942 e ninguém imaginava o que ele poderia conter. Um apartamento em uma zona nobre de Paris, perto da famosa ópera Palais Garnier, que se descobriu ter pertencido a uma famosa atriz e socialite (e rica!) parisiense, Madame de Florian. Obrigada a fugir dos horrores da 2ª Guerra Mundial, Florian deixou tudo pra trás.

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A mulher foi para o sul do país e, por razões desconhecidas, não mais voltou ao apartamento, mesmo depois do fim do conflito. Madame de Floria, no entanto, continuou pagando o aluguel do apartamento até ao último dos seus dias, em 2010, com 91 anos. Com a sua morte, o leiloeiro Olivier Choppin-Janvry entrou no apartamento e fez a descoberta.
“Havia um cheiro a poeira velha”, conta. Mas essa era a única real marca do tempo – todo o resto estava perfeitamente preservado, intacto, como se a casa esperasse que, a qualquer momento e como que por milagre, a dona decidisse voltar de férias. Peças de arte, brinquedos muito antigos e animais embalsamados faziam parte do cenário quando Olivier entrou. Mas um quadro chamou a atenção: um retrato de uma mulher, da autoria do pintor Giovanni Boldini. A musa? A própria Madame de Florian, quando tinha 24 anos.
Mais que um apartamento, esta verdadeira viagem no tempo continua intacta (o pó foi limpo e o retrato da Madame vendido por mais de 2 milhões de euros, o resto foi deixado como estava), mas não está prevista a abertura ao público.
Felizmente temos as maravilhosas fotos abaixo, que nos permitem dar uma olhada numa época há muito deixada pra trás.







terça-feira, 8 de abril de 2014

Paralelo dos duplos - o Horla e a confissão de Lúcio




Fábio Della Paschoa Rodrigues

Eu não sou eu nem o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá Carneiro
  
Guy de Maupassant e Mário de Sá Carneiro produziram obras que se caracterizam pelo predomínio do inverossímil sobre o real. Há nelas muitos elementos em comum: no enredo, nos personagens, nas situações, nas causas   – e nos próprios autores.
As novelas mostram a complicada relação eu-outro (feita de oposição e identificação), a luta com o (seu) duplo, com o enrustido (a sexualidade) e com a sociedade. Na verdade, essa é a luta interior dos próprios autores.

O narrador d’ O Horla é um senhor francês na casa dos 40 anos, solteiro, que vive às margens do Sena, em Biessard, com “fortuna suficiente para viver com um certo luxo”.
Lúcio é um jovem escritor português que mora em Paris, relapso estudante de Direito, que freqüenta ambientes requintados de artistas da moda, onde conhece Ricardo de Loureiro, poeta e também português.
Os personagens-narradores procuram sempre demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os (simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”.
Eles intensificam o caráter documental de suas obras: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora como um diário íntimo.
O estilo da narrativa tem por objetivo deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?). Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro, mas parece não ter o mesmo efeito no primeiro Horla (conto). Daí, a mudança para um diário íntimo da segunda versão, que, além disso, aumentou o número de páginas (novela) e deixou a desordem subjetiva refletir-se numa desordem da escrita, em contraponto com a “objetividade” da primeira versão.

Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
(...) E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)
Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.
(A Confissão de Lúcio - Prólogo)

Durante muito tempo julgou-me louco. Hoje duvida. Dentro de algum tempo, todos saberão que tenho um espírito tão são, lúcido e perspicaz quanto o dos senhores, infelizmente para mim, para os senhores e para toda a humanidade.
Mas desejo começar pelos próprios fatos, pelos simples fatos.
(O Horla - 1ª versão)

Ah! Quem compreenderá a minha abominável angústia? Quem compreenderá a emoção de um homem, são de espírito, bem desperto, cheio de razão (...)?
(O Horla - 2ª versão)


Os personagens se movem num ambiente carregado de excentricidade e vivem uma história extraordinária.
A “casa” é o lugar onde acontecem as experiências fantásticas, onde ocorrem as “situações de perigo”. E a viagem (fuga) é o meio pelo qual acredita-se voltar à realidade e à paz.
Há um ciclo casa-viagem-casa constante nas obras.
N’O Horla, são muitas as experiências fantásticas “dentro de casa”, que levam o personagem-narrador a fazer as constantes viagens.

2 de junho - (...)
Acometeu-me de súbito um arrepio, não um arrepio de frio, mas um estranho arrepio de angústia.
Apressei o passo, inquieto de estar sozinho naquele bosque, amedrontado sem razão, estupidamente, pela solidão profunda. De súbito me pareceu que estava sendo seguido, que andavam nos meus calcanhares, bem junto de mim, quase a tocar-me.
5 de julho. - (...) Como o faço agora cada noite, eu tinha fechado a minha porta a chave; tendo sede, bebi meio copo d’água, e notei por acaso que a minha jarra estava cheia até o gargalo de cristal.
Deitei-me em seguida e caí num dos meus terríveis sonos (...)
Tendo enfim recuperado a razão, senti sede de novo; (...) Ergui-a [a jarra], inclinado-a sobre o meu copo: nada escorreu. - Estava vazia! Tinham então bebido aquela água? Quem? Eu?
(...)
6 de agosto. - (...) vi, distintamente, bem perto de mim, dobrar-se o hastil  de uma das rosas, como se mão invisível o torcesse, e depois o vi  quebrar-se, como se a mão o tivesse colhido! E a flor ergueu-se no ar (...)
17 de agosto. - (...) Nada vi a princípio, depois, de repente, pareceu-me que uma página do livro (...) acabara de virar-se sozinha. (...) Uns quatro minutos depois, eu vi sim, eu vi com os meus próprios olhos, uma outra página erguer-se e pousar sobre a precedente, como se um dedo a tivesse folheado.(...)
( O Horla - 2ª versão)

É em Lisboa, terra natal de Lúcio, que este conhece Marta, esposa do amigo Ricardo Loureiro, e que ela se entrega fogosamente a Lúcio e cria o mistério aos olhos do amante: Lúcio nada sabe sobre ela, nem sobre seu passado ou presente e nem mesmo se ela e Ricardo são de fato casados. Marta é envolta numa aura de mistério. Lúcio sente, às vezes, uma inexplicável repulsa diante do lindo corpo de Marta, que se transforma em nojo, ao descobrir que ela também era amante de outros amigos de Ricardo, e que este sabia de tudo o que se passava. Em fuga desesperada, Lúcio parte para Paris.

Porém, nas viagens, inconscientemente, os personagens buscam novas experiências que acabam por somar-se às de casa e comprometer ainda mais a lucidez dos fatos.
O narrador d’O Horla viaja para o monte Saint-Michel onde visita uma abadia gótica (tipicamente sombria), ouvindo lendas fantásticas de um monge, e para Paris, onde tem contato com estranhas experiências sobre hipnotismo.
Lúcio vai a uma festa em Paris, promovida por uma milionária norte-americana, lésbica e interessada na voluptuosidade como arte. No suntuoso palacete dessa norte-americana, assiste a um estranho espetáculo.

3 de junho. - A noite foi horrível. Vou ausentar-me durante algumas semanas. Uma pequena viagem, sem dúvida, me deixará restabelecido.
2 de julho. - Regresso. Estou curado. (...) Visitei o monte Saint-Michel (...)
Tendo galgado a rua estreita e rápida, penetrei na mais admirável morada gótica construída para Deus (...)
E o monge me contou histórias (...), lendas e mais lendas.
16 de julho. - Vi ontem coisas que bastante me preocuparam.
(...)
Ela sentou-se numa poltrona e ele começou a olhá-la fixamente, fascinando-a.
(...)
Ao cabo de quinze minutos ela dormia.
_ Coloque-se atrás dela, disse o médico.
E eu me sentei atrás dela. Ele colocou-lhe entre as mãos  um cartão de visita, dizendo-lhe: “Isto aqui é um espelho; que vê nele?”
Ela respondeu:
_ Eu vejo o meu primo.
(O Horla - 2ª versão)

_ Depois da ceia, é o espetáculo - o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas idéias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro!
(...)
E começou dançando...
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente.
(...)
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que (...) soçobrou a seus pés...
(...)
No palco surgiram três dançarinas.
(...)
Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam cada vez mais rápidos até que por último, num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os véus - seios, ventres e sexos descobertos - os corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez luminosa....
(cap. I - A confissão de Lúcio)

O espaço, nas obras, constituem, mais que cenários, pretextos que não se diferenciam e não se especificam na construção do verdadeiro espaço dos personagens: o espaço que aproxima (confunde) realidade e sonho. Os momentos vividos nesses espaços têm mais densidade psicológica do que concretude objetiva, estão mais ligados ao imaginário que à realidade.

Os personagens assumem duas posições que nos mostram como que um desdobramento  de personalidade: de um lado o narrador “verossímil”, que afirma estar lúcido e relatar tão somente os simples fatos; de outro lado, o narrador “inverossímil”, que aceita o jogo dos acontecimentos e inverte fantasia e realidade.
Tentam inferir fidelidade aos fatos que relatam, mas ao mesmo tempo demonstram saber a incoerência, a falta de lucidez do que contarão. Esse movimento de reiteração da verossimilhança da história pressupondo a sua inverossimilhança será constante nas novelas, e será usado como defesa para constatar a lucidez dos narradores.
Os narradores tentam explicar os fatos à luz da razão, usando argumentos racionais e científicos em seu favor, tentando induzir à lucidez. Porém, vão se mostrando cada vez mais perturbados, menos coerentes.
O constante questionamento do narrador sobre a lucidez dos fatos tem a intenção de produzir no leitor a constante dúvida das narrações fantásticas (real ou imaginário?). As obras mantêm-se na hesitação entre o real e o imaginário até o desfecho, mas sempre tentando convencer o leitor da realidade dos fatos.
A perturbação dos fatos reflete-se na escrita, cheias de interrogações, exclamações, repetições e reticências.

16 de maio. - Estou doente, decididamente!
(...)
18 de maio. - Acabo de consultar o meu médico (...)
5 de julho. - Terei perdido a razão? O que se passou na última noite é de tal modo estranho, que a minha cabeça fica perdida quando recordo!
(...)
6 de julho. - Enlouqueço. Beberam outra vez toda a minha água esta noite: ou antes, eu a bebi!
Mas fui eu? Fui eu? Quem? Quem seria? Oh! meu Deus! Eu enlouqueço! Quem me salvará?
(...)
6 de agosto. - Desta vez eu não estou louco. Eu vi... eu vi... eu vi!..
(...) Então fui tomado de uma cólera furiosa contra mim mesmo; pois não é lícito a um homem sensato e sério sofrer semelhantes alucinações.
Mas seria mesmo alucinação?
(...)
7 de agosto. - (...)
Indago comigo mesmo se não estarei louco.(...)
Sem dúvida eu me julgaria louco, absolutamente louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse perfeitamente o meu estado, se não o sondasse, analisando-o com uma completa lucidez. Quando muito, eu seria, afinal, um alucinado raciocinante.
(...)
16 de agosto. - (...) Mandei parar na Biblioteca e tomei emprestado o grande tratado de Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
(...)
19 de agosto. - Já sei... já sei.. já sei tudo! Acabo de ler isto na Revue du Monde Scientifique (...)
(O Horla - 2ª versão)

Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão começou no meu espírito... Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite achei-me perguntando a mim próprio:
_ Mas no fim de contas quem é essa mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Mistério...
 (A confissão de Lúcio - cap. III)

Depois, olhando melhor nem era só do seu passado que eu ignorava tudo - também duvidava do seu presente (...). Sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim (...). Pois bem, pela minha parte, quando a não tinha a meu lado, coisa alguma que restava que, materialmente, me pudesse provar a sua existência.
(A confissão de Lúcio - cap. V)


O tema das duas novelas nos coloca a questão do eu versus o outro, ou do eu projetado no outro ou, ainda, da fusão do eu e do outro.
Nelas há a criação de um novo ser imaginário (o outro) que dá vazão aos sentimentos sufocados (à loucura?).
N’A confissão de Lúcio há a criação de Marta, obra de voluptuosidade-arte, fruto da imaginação de Lúcio ou Ricardo ou de ambos.
N’O Horla há a criação de um ser invisível, que se alimenta basicamente de água e que não se sabe ser real ou fruto da imaginação do narrador.
Ora, esse outro são os sentimentos sufocados nos personagens, que cresceram de tal modo que explodiram em um novo ser. Estes sentimentos são frutos da homossexualidade enrustida, que é a chave das novelas.
Em toda homossexualidade há o desejo e o medo pelo outro. Quando o medo é maior, a sexualidade se fecha e pode permanecer enrustida até a completa maturidade. Em nossa sociedade, a homossexualidade é perversão, doença e/ou vulgaridade, o que impede a realização do desejo, que para o homossexual nada tem de vulgar.
Porém, o desejo sempre acaba por vir à tona e há dois caminhos a seguir neste ponto: a aceitação da homossexualidade ou a negação completa dos sentimentos, que pode levar à loucura. Em muitos casos, a aceitação da homossexualidade é parcial e convertida numa bissexualidade.

Este parece ser o caso de Lúcio. A solução encontrada foi a criação de Marta, um novo ser do sexo oposto, que funcionava como intermediário entre os verdadeiros amantes, sem o ônus daquilo que é socialmente interdito: o homossexualismo.

O narrador d’O Horla não se aceita e permanece numa linha tênue entre a realidade e a loucura. Na verdade, para ele, os sentimentos que vêm à tona são loucura.
A sugestão de homossexualismo é explícita em Sá Carneiro (que era homossexual), conforme nos mostram os trechos abaixo, em que Marta pede um beijo a Lúcio, na presença de Ricardo.

Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trêmulo de medo, estendi os lábios mal os pousando na pele...
E Marta:
_ Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim... tomou-me o rosto... beijou-me...


O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.
(A confissão de Lúcio - cap. V)

Começou a parecer-me, não sei porquê, que nunca a possuíra inteiramente, mesmo que não era possível possuir aquele corpo por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse do meu sexo!
E ao penetrar-me esta idéia alucinadora, eu lembrava-me sempre que o  beijo de Ricardo, esse beijo masculino, me soubera às mordeduras de Marta, tivera a mesma cor, a mesma perturbação...
(A confissão de Lúcio - cap. VI)


N’O Horla a sugestão é muito sutil. Passa despercebida até. Têm-se de prestar atenção aos pormenores do relato, na conotação que se dá a alguns fatos relatados.
Características relevantes são extraídas de passagens, à primeira vista, menores. O narrador é um senhor (conforme a primeira versão, com 42 anos de idade), solteiro, com certa fortuna e uma grande casa com criadagem. Ele não faz menção, em momento algum da novela, a mulheres ou a sexo. Ora, não é comum um homem (heterossexual) nessa posição omitir a figura feminina e, muito menos, o sexo de sua vida - a menos que isto não esteja presente nela.
O narrador se refere ao novo ser no masculino, não como uma generalização, mas adotando um sexo para ele. As descrições dos “ataques” noturnos do ser têm certa conotação erótica.

Eu o sinto e o vejo... e sinto também que alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe para a minha cama, ajoelha-se sobre o meu peito, me toma o pescoço entre as suas mãos e aperta... aperta...
(...)
8 de agosto. - Passei ontem uma terrível noite. Ele não se manifesta mais, mas eu o sinto perto de mim, espiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me (...)
Dormi, no entanto.
(O Horla - 2ª versão)

Acrescente-se o curioso título da novela, em francês Le Horla. O artigo do nome é masculino, porém a terminação é feminina. Há também a hipótese do nome derivar da fusão do nome da mãe de Maupassant com o nome de seu melhor amigo. Clássicos da homossexualidade, psicologicamente falando: a mãe e um amor travestido de amizade.

Os personagens chegam a um limite da loucura, quando percebem que o outro, na verdade, está dentro deles mesmos.
Quando se dão conta da realidade de fato e abandonam a realidade artística (no caso de Lúcio) e a realidade inverossímil (no caso do narrador d’O Horla), o confronto com o eu-outro é tão violento que o desfecho de ambas as novelas é trágico: o assassínio (ou suicídio).
O medo prevalece em ambos os personagens e faz com que reneguem seus sentimentos e sua própria vida.

14 de agosto. - Estou perdido! Alguém possui a minha alma e a governa! alguém ordena todos os meus atos, todos os meus gestos, todos os meus pensamentos. Eu nada mais sou em mim, nada mais sou que um espectador, escravizado, e aterrorizado de todas as coisas que eu faço.
19 de agosto. -  (...)
Mas que tenho? É ele, o Horla, que me habita, que me faz pensar estas loucuras! Ele está em mim, ele se torna a minha alma; eu o matarei!
Eu o matarei.
(...)
10 de setembro. - (...) Tudo acabado. Enfim... Mas terá ele morrido?
(...)
Não... não... sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma... ele não está morto... Então... então.. vai ser preciso agora que eu me mate!...
(O Horla - 2ª versão)

Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não arredara pé do limiar...
E então foi o Mistério... Mistério o fantástico de minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta - não! -, era meu amigo, era Ricardo.. E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama...
(A confissão de Lúcio - cap. VII)

No momento em que a tensão se torna insuportável para a consciência, a própria vida do outro é destruída. Mas o eu e ooutro são um só e, portanto, o eu também tem de ser destruído.
A epígrafe de Fernando Pessoa, utilizada por Sá Carneiro em seu romance, reflete um pouco a tensão das novelas:
(...) assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro viveria (...)


Textos:
O Horla (1ª e 2ª versão), Guy de Maupassant (1886)
A confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro (1913)

As novelas mostram a complicada relação eu-outro (feita de oposição e identificação), a luta com o (seu) duplo, com o enrustido (a sexualidade) e com a sociedade. Na verdade, essa é a luta interior dos próprios autores.

O narrador d’ O Horla é um senhor francês na casa dos 40 anos, solteiro, que vive às margens do Sena, em Biessard, com “fortuna suficiente para viver com um certo luxo”.
Lúcio é um jovem escritor português que mora em Paris, relapso estudante de Direito, que freqüenta ambientes requintados de artistas da moda, onde conhece Ricardo de Loureiro, poeta e também português.
Os personagens-narradores procuram sempre demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os (simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”.
Eles intensificam o caráter documental de suas obras: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora como um diário íntimo.
O estilo da narrativa tem por objetivo deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?). Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro, mas parece não ter o mesmo efeito no primeiro Horla (conto). Daí, a mudança para um diário íntimo da segunda versão, que, além disso, aumentou o número de páginas (novela) e deixou a desordem subjetiva refletir-se numa desordem da escrita, em contraponto com a “objetividade” da primeira versão.

Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
(...) E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)
Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.
(A Confissão de Lúcio - Prólogo)

Durante muito tempo julgou-me louco. Hoje duvida. Dentro de algum tempo, todos saberão que tenho um espírito tão são, lúcido e perspicaz quanto o dos senhores, infelizmente para mim, para os senhores e para toda a humanidade.
Mas desejo começar pelos próprios fatos, pelos simples fatos.
(O Horla - 1ª versão)

Ah! Quem compreenderá a minha abominável angústia? Quem compreenderá a emoção de um homem, são de espírito, bem desperto, cheio de razão (...)?
(O Horla - 2ª versão)


Os personagens se movem num ambiente carregado de excentricidade e vivem uma história extraordinária.
A “casa” é o lugar onde acontecem as experiências fantásticas, onde ocorrem as “situações de perigo”. E a viagem (fuga) é o meio pelo qual acredita-se voltar à realidade e à paz.
Há um ciclo casa-viagem-casa constante nas obras.
N’O Horla, são muitas as experiências fantásticas “dentro de casa”, que levam o personagem-narrador a fazer as constantes viagens.

2 de junho - (...)
Acometeu-me de súbito um arrepio, não um arrepio de frio, mas um estranho arrepio de angústia.
Apressei o passo, inquieto de estar sozinho naquele bosque, amedrontado sem razão, estupidamente, pela solidão profunda. De súbito me pareceu que estava sendo seguido, que andavam nos meus calcanhares, bem junto de mim, quase a tocar-me.
5 de julho. - (...) Como o faço agora cada noite, eu tinha fechado a minha porta a chave; tendo sede, bebi meio copo d’água, e notei por acaso que a minha jarra estava cheia até o gargalo de cristal.
Deitei-me em seguida e caí num dos meus terríveis sonos (...)
Tendo enfim recuperado a razão, senti sede de novo; (...) Ergui-a [a jarra], inclinado-a sobre o meu copo: nada escorreu. - Estava vazia! Tinham então bebido aquela água? Quem? Eu?
(...)
6 de agosto. - (...) vi, distintamente, bem perto de mim, dobrar-se o hastil  de uma das rosas, como se mão invisível o torcesse, e depois o vi  quebrar-se, como se a mão o tivesse colhido! E a flor ergueu-se no ar (...)
17 de agosto. - (...) Nada vi a princípio, depois, de repente, pareceu-me que uma página do livro (...) acabara de virar-se sozinha. (...) Uns quatro minutos depois, eu vi sim, eu vi com os meus próprios olhos, uma outra página erguer-se e pousar sobre a precedente, como se um dedo a tivesse folheado.(...)
( O Horla - 2ª versão)

É em Lisboa, terra natal de Lúcio, que este conhece Marta, esposa do amigo Ricardo Loureiro, e que ela se entrega fogosamente a Lúcio e cria o mistério aos olhos do amante: Lúcio nada sabe sobre ela, nem sobre seu passado ou presente e nem mesmo se ela e Ricardo são de fato casados. Marta é envolta numa aura de mistério. Lúcio sente, às vezes, uma inexplicável repulsa diante do lindo corpo de Marta, que se transforma em nojo, ao descobrir que ela também era amante de outros amigos de Ricardo, e que este sabia de tudo o que se passava. Em fuga desesperada, Lúcio parte para Paris.

Porém, nas viagens, inconscientemente, os personagens buscam novas experiências que acabam por somar-se às de casa e comprometer ainda mais a lucidez dos fatos.
O narrador d’O Horla viaja para o monte Saint-Michel onde visita uma abadia gótica (tipicamente sombria), ouvindo lendas fantásticas de um monge, e para Paris, onde tem contato com estranhas experiências sobre hipnotismo.
Lúcio vai a uma festa em Paris, promovida por uma milionária norte-americana, lésbica e interessada na voluptuosidade como arte. No suntuoso palacete dessa norte-americana, assiste a um estranho espetáculo.

3 de junho. - A noite foi horrível. Vou ausentar-me durante algumas semanas. Uma pequena viagem, sem dúvida, me deixará restabelecido.
2 de julho. - Regresso. Estou curado. (...) Visitei o monte Saint-Michel (...)
Tendo galgado a rua estreita e rápida, penetrei na mais admirável morada gótica construída para Deus (...)
E o monge me contou histórias (...), lendas e mais lendas.
16 de julho. - Vi ontem coisas que bastante me preocuparam.
(...)
Ela sentou-se numa poltrona e ele começou a olhá-la fixamente, fascinando-a.
(...)
Ao cabo de quinze minutos ela dormia.
_ Coloque-se atrás dela, disse o médico.
E eu me sentei atrás dela. Ele colocou-lhe entre as mãos  um cartão de visita, dizendo-lhe: “Isto aqui é um espelho; que vê nele?”
Ela respondeu:
_ Eu vejo o meu primo.
(O Horla - 2ª versão)

_ Depois da ceia, é o espetáculo - o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas idéias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro!
(...)
E começou dançando...
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente.
(...)
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que (...) soçobrou a seus pés...
(...)
No palco surgiram três dançarinas.
(...)
Pouco a pouco os seus movimentos se tornavam cada vez mais rápidos até que por último, num espasmo, as suas bocas se uniram e, rasgados todos os véus - seios, ventres e sexos descobertos - os corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez luminosa....
(cap. I - A confissão de Lúcio)

O espaço, nas obras, constituem, mais que cenários, pretextos que não se diferenciam e não se especificam na construção do verdadeiro espaço dos personagens: o espaço que aproxima (confunde) realidade e sonho. Os momentos vividos nesses espaços têm mais densidade psicológica do que concretude objetiva, estão mais ligados ao imaginário que à realidade.

Os personagens assumem duas posições que nos mostram como que um desdobramento  de personalidade: de um lado o narrador “verossímil”, que afirma estar lúcido e relatar tão somente os simples fatos; de outro lado, o narrador “inverossímil”, que aceita o jogo dos acontecimentos e inverte fantasia e realidade.
Tentam inferir fidelidade aos fatos que relatam, mas ao mesmo tempo demonstram saber a incoerência, a falta de lucidez do que contarão. Esse movimento de reiteração da verossimilhança da história pressupondo a sua inverossimilhança será constante nas novelas, e será usado como defesa para constatar a lucidez dos narradores.
Os narradores tentam explicar os fatos à luz da razão, usando argumentos racionais e científicos em seu favor, tentando induzir à lucidez. Porém, vão se mostrando cada vez mais perturbados, menos coerentes.
O constante questionamento do narrador sobre a lucidez dos fatos tem a intenção de produzir no leitor a constante dúvida das narrações fantásticas (real ou imaginário?). As obras mantêm-se na hesitação entre o real e o imaginário até o desfecho, mas sempre tentando convencer o leitor da realidade dos fatos.
A perturbação dos fatos reflete-se na escrita, cheias de interrogações, exclamações, repetições e reticências.

16 de maio. - Estou doente, decididamente!
(...)
18 de maio. - Acabo de consultar o meu médico (...)
5 de julho. - Terei perdido a razão? O que se passou na última noite é de tal modo estranho, que a minha cabeça fica perdida quando recordo!
(...)
6 de julho. - Enlouqueço. Beberam outra vez toda a minha água esta noite: ou antes, eu a bebi!
Mas fui eu? Fui eu? Quem? Quem seria? Oh! meu Deus! Eu enlouqueço! Quem me salvará?
(...)
6 de agosto. - Desta vez eu não estou louco. Eu vi... eu vi... eu vi!..
(...) Então fui tomado de uma cólera furiosa contra mim mesmo; pois não é lícito a um homem sensato e sério sofrer semelhantes alucinações.
Mas seria mesmo alucinação?
(...)
7 de agosto. - (...)
Indago comigo mesmo se não estarei louco.(...)
Sem dúvida eu me julgaria louco, absolutamente louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse perfeitamente o meu estado, se não o sondasse, analisando-o com uma completa lucidez. Quando muito, eu seria, afinal, um alucinado raciocinante.
(...)
16 de agosto. - (...) Mandei parar na Biblioteca e tomei emprestado o grande tratado de Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
(...)
19 de agosto. - Já sei... já sei.. já sei tudo! Acabo de ler isto na Revue du Monde Scientifique (...)
(O Horla - 2ª versão)

Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão começou no meu espírito... Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite achei-me perguntando a mim próprio:
_ Mas no fim de contas quem é essa mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Mistério...
 (A confissão de Lúcio - cap. III)

Depois, olhando melhor nem era só do seu passado que eu ignorava tudo - também duvidava do seu presente (...). Sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim (...). Pois bem, pela minha parte, quando a não tinha a meu lado, coisa alguma que restava que, materialmente, me pudesse provar a sua existência.
(A confissão de Lúcio - cap. V)


O tema das duas novelas nos coloca a questão do eu versus o outro, ou do eu projetado no outro ou, ainda, da fusão do eu e do outro.
Nelas há a criação de um novo ser imaginário (o outro) que dá vazão aos sentimentos sufocados (à loucura?).
N’A confissão de Lúcio há a criação de Marta, obra de voluptuosidade-arte, fruto da imaginação de Lúcio ou Ricardo ou de ambos.
N’O Horla há a criação de um ser invisível, que se alimenta basicamente de água e que não se sabe ser real ou fruto da imaginação do narrador.
Ora, esse outro são os sentimentos sufocados nos personagens, que cresceram de tal modo que explodiram em um novo ser. Estes sentimentos são frutos da homossexualidade enrustida, que é a chave das novelas.
Em toda homossexualidade há o desejo e o medo pelo outro. Quando o medo é maior, a sexualidade se fecha e pode permanecer enrustida até a completa maturidade. Em nossa sociedade, a homossexualidade é perversão, doença e/ou vulgaridade, o que impede a realização do desejo, que para o homossexual nada tem de vulgar.
Porém, o desejo sempre acaba por vir à tona e há dois caminhos a seguir neste ponto: a aceitação da homossexualidade ou a negação completa dos sentimentos, que pode levar à loucura. Em muitos casos, a aceitação da homossexualidade é parcial e convertida numa bissexualidade.

Este parece ser o caso de Lúcio. A solução encontrada foi a criação de Marta, um novo ser do sexo oposto, que funcionava como intermediário entre os verdadeiros amantes, sem o ônus daquilo que é socialmente interdito: o homossexualismo.

O narrador d’O Horla não se aceita e permanece numa linha tênue entre a realidade e a loucura. Na verdade, para ele, os sentimentos que vêm à tona são loucura.
A sugestão de homossexualismo é explícita em Sá Carneiro (que era homossexual), conforme nos mostram os trechos abaixo, em que Marta pede um beijo a Lúcio, na presença de Ricardo.

Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trêmulo de medo, estendi os lábios mal os pousando na pele...
E Marta:
_ Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim... tomou-me o rosto... beijou-me...


O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.
(A confissão de Lúcio - cap. V)

Começou a parecer-me, não sei porquê, que nunca a possuíra inteiramente, mesmo que não era possível possuir aquele corpo por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse do meu sexo!
E ao penetrar-me esta idéia alucinadora, eu lembrava-me sempre que o  beijo de Ricardo, esse beijo masculino, me soubera às mordeduras de Marta, tivera a mesma cor, a mesma perturbação...
(A confissão de Lúcio - cap. VI)


N’O Horla a sugestão é muito sutil. Passa despercebida até. Têm-se de prestar atenção aos pormenores do relato, na conotação que se dá a alguns fatos relatados.
Características relevantes são extraídas de passagens, à primeira vista, menores. O narrador é um senhor (conforme a primeira versão, com 42 anos de idade), solteiro, com certa fortuna e uma grande casa com criadagem. Ele não faz menção, em momento algum da novela, a mulheres ou a sexo. Ora, não é comum um homem (heterossexual) nessa posição omitir a figura feminina e, muito menos, o sexo de sua vida - a menos que isto não esteja presente nela.
O narrador se refere ao novo ser no masculino, não como uma generalização, mas adotando um sexo para ele. As descrições dos “ataques” noturnos do ser têm certa conotação erótica.

Eu o sinto e o vejo... e sinto também que alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe para a minha cama, ajoelha-se sobre o meu peito, me toma o pescoço entre as suas mãos e aperta... aperta...
(...)
8 de agosto. - Passei ontem uma terrível noite. Ele não se manifesta mais, mas eu o sinto perto de mim, espiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me (...)
Dormi, no entanto.
(O Horla - 2ª versão)

Acrescente-se o curioso título da novela, em francês Le Horla. O artigo do nome é masculino, porém a terminação é feminina. Há também a hipótese do nome derivar da fusão do nome da mãe de Maupassant com o nome de seu melhor amigo. Clássicos da homossexualidade, psicologicamente falando: a mãe e um amor travestido de amizade.

Os personagens chegam a um limite da loucura, quando percebem que o outro, na verdade, está dentro deles mesmos.
Quando se dão conta da realidade de fato e abandonam a realidade artística (no caso de Lúcio) e a realidade inverossímil (no caso do narrador d’O Horla), o confronto com o eu-outro é tão violento que o desfecho de ambas as novelas é trágico: o assassínio (ou suicídio).
O medo prevalece em ambos os personagens e faz com que reneguem seus sentimentos e sua própria vida.

14 de agosto. - Estou perdido! Alguém possui a minha alma e a governa! alguém ordena todos os meus atos, todos os meus gestos, todos os meus pensamentos. Eu nada mais sou em mim, nada mais sou que um espectador, escravizado, e aterrorizado de todas as coisas que eu faço.
19 de agosto. -  (...)
Mas que tenho? É ele, o Horla, que me habita, que me faz pensar estas loucuras! Ele está em mim, ele se torna a minha alma; eu o matarei!
Eu o matarei.
(...)
10 de setembro. - (...) Tudo acabado. Enfim... Mas terá ele morrido?
(...)
Não... não... sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma... ele não está morto... Então... então.. vai ser preciso agora que eu me mate!...
(O Horla - 2ª versão)

Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não arredara pé do limiar...
E então foi o Mistério... Mistério o fantástico de minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta - não! -, era meu amigo, era Ricardo.. E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama...
(A confissão de Lúcio - cap. VII)

No momento em que a tensão se torna insuportável para a consciência, a própria vida do outro é destruída. Mas o eu e ooutro são um só e, portanto, o eu também tem de ser destruído.
A epígrafe de Fernando Pessoa, utilizada por Sá Carneiro em seu romance, reflete um pouco a tensão das novelas:
(...) assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro viveria (...)


Textos:
O Horla (1ª e 2ª versão), Guy de Maupassant (1886)
A confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro (1913)