segunda-feira, 12 de julho de 2010

G. K. Chesterton. O homem das cavernas. as pinturas não provam que o


homem das cavernas vivesse nas cavernas
Se o menino ouvira falar disso, admitiria, então, que tais especulações podiam ser verdadeiras e não incompatíveis com os fatos verdadeiramente certos. Nada se opõe a que o artista tivesse outra feição característica além da de ser artista.

http://www.permanencia.org.br/revista/Pensamento/chesterton1.htm

O homem primitivo bem podia se comprazer tanto em surrar as mulheres como em pintar animais. O único que podemos afirmar é que os desenhos falam de seu caráter como artista e não como carrasco de mulheres. É possível que terminando de dar uma tunda em sua mãe ou na sua esposa lhe fosse agradável recrear-se, no murmúrio de um arroio e na contemplação de um cervo que bebia... Estas coisas não são impossíveis, mas, sim, improváveis. O senso comum do menino se limitaria a aprender dos fatos o que os fatos o ensinavam e ns cavernas quase não há outro fato verídico que o das pinturas. O menino não veria outra coisa senão que um homem representa animais com ocre vermelho, pela mesma razão que ele empregava o carvão nos seus desenhos.

O primitivo pintara um cervo como ele pintava cavalos; um cervo com a cabeça virada, levado pela mesma causa que o impelia a pintar porcos com os olhos cerrados: porque era difícil. O menino e o troglodita por serem humanos uniam-se na fraternidade dos homens. E esta fraternidade é mais nobre quando enlaça os abismos do tempo do que quando serve de ponte às distintas classes sociais. O que ele não veria na caverna seria um indício, sequer, da evolução. Se alguém lhe dissesse que aquelas pinturas haviam sido feitas por S. Francisco de Assis, pelo seu puro e santo amor aos animais, nada encontraria na caverna que contrariasse esse asserto.
Uma senhora amiga me sustentava, com bom humor, certa vez, que a caverna primitiva só servia para os bebês e que tinham pintado animais nas paredes para distraí-los, como nas escolas infantis que se adornam as paredes com coelhos e elefantes. É uma burla, de acordo. Mas, no entanto, atrai a nossa atenção para algumas suposições que, sem mais provas, aceitamos como verdadeiras.

Com efeito, as pinturas não provam que o homem das cavernas vivesse nas cavernas, da mesma forma que o descobrimento de uma adega subterrânea em Balham [3] não demonstrará nunca que a classe média da época vitoriana [4] vivia em baixo da terra. A caverna podia ter um destino especial como a adega. Podia ser uma espécie de capela religiosa ou de um refúgio em tempo de guerra, de um esconderijo de alguma sociedade secreta, ou, sabe Deus, quantas coisas mais. Mas, é indubitável que a sua artística decoração parece, mesmo, mais própria de um abrigo infantil do que de um âmbito revolucionário. Concebi um menino no subterrâneo. Tão fácil é conceber um outro qualquer, moderno ou da mais remota antiguidade, acariciando suavemente os animais pintados na rocha. Gesto carinhoso que pode ser o antecedente de outra gruta e de outro menino [5].

Mas, suponhamos que o menino não é discípulo de um sacerdote e sim de um professor, de um desses professores que simplificam a relação entre homens e animais com uma simples explicação evolucionista. Suponhamos que o menino se considera um simples Mougle [6]. Que significaria para ele a simplíssima lição dessas gravuras na rocha? Diria, naturalmente, que tendo descido muito, abaixo da terra, encontrara, aí, um lugar onde um homem pintara um cervo. Porém, muitíssimo mais teria que descer para encontrar um outro local em que um cervo teria pintado um homem. Parece, até, uma verdade de Perogrullo,[7] mas, entretanto, é uma grande verdade. Desça-se a profundidades incríveis; chegue-se a continentes submergidos, tão remotos como as mais remotas estrelas; transporte-se à lua; procure-se nos grandes abismos gelados, nas grotas colossais de pedras: - se encontrará, sim, pegadas de monstros de formas inconcebíveis. Mas, em nenhuma parte a afirmação positiva de que um dedo houvesse traçado uma linha inteligente na areia, nem sinais de que uma garra tentasse esboçar uma forma.

O menino, certo, não esperará encontrá-lo, como não esperará, jamais, ver um gato traçando a caricatura de um cão. E porque não encontra entre os animais o menor indício de uma arte embrionária? É a lição simples, muito simples que nos ensina a caverna com suas paredes pintadas; tão simples, que dá trabalho compreendê-la. – Que o homem se diferencia dos animais mais pela espécie e não por uma graduação. – E a prova está aqui: - todo o mundo acha possível e natural que um homem pinte a imagem de um macaco, ao passo que tomaria por uma burla, por uma brincadeira a afirmativa de que o macaco mais inteligente da criação houvesse logrado pintar a imagem de um homem.
Há alguma coisa que separa fundamentalmente o homem dos animais. A arte é patrimônio do homem. Esta é a verdade simples com que se deve começar a história dos princípios.

O evolucionista assombra-se, nas cavernas, com coisas demasiado grandes para serem vistas e demasiado simples para serem compreendidas. E, por isso, procura deduzir conseqüências indiretas e duvidosas dos detalhes das pinturas, porque não conseguiu ver o significado primordial do conjunto. Só obtém deduções teóricas sobre a ausência de religião ou a presença da superstição, acerca da existência de um governo de tribo, da caça, de sacrifícios humanos, etc., etc.

No próximo capítulo tratarei mais detalhadamente das origens pré-históricas das idéias humanas, e mui especialmente da idéia religiosa. Aqui só trato do caso concreto da caverna, como uma espécie de símbolo da verdade singela com que deve principiar a história. De tudo o que se descobriu nela, a única coisa que se releva de certo – é que o homem sabia pintar quadrúpedes e que os quadrúpedes não sabiam pintar homens. Se o homem que os pintava era tão animal como eles, ressalta como extraordinário, que soubesse fazer o que eles não sabiam e não sabem. Se o homem, ainda, era um produto de crescimento biológico, como qualquer outro animal, também é de estranhar sobremodo, que em nada se pareça com aqueles seus “semelhantes”. Enfim, o homem parece mais sobrenatural como um produto natural do que como um produto sobrenatural.

A razão que me levou a principiar esta história na caverna, como das especulações de Platão, é que ela ilustra particularmente o erro em que se fundam as introduções e prefácios evolucionistas em uso. É inútil começar dizendo que todas as coisas são conseqüências de um desenvolvimento gradual e lento. Porque, em um caso tão palmar como no das pinturas das cavernas pré-históricas, não se reconhece um único vestígio de tal desenvolvimento ou graduação. Os macacos não sabem começar uma pintura e os homens sabem acabá-la. O pitecantropo, não pintou um cervo e o Homo Sapiens conseguiu fazê-lo.

Tudo o que podemos dizer desta noção de reproduzir as coisas é que só existe no homem, e que não podemos falar desse assunto, sem tratar o homem como alguma coisa separada da natureza. Em outras palavras: toda a história deve começar pelo homem, como homem, pelo homem como algo absoluto e único. De como ele veio à terra ou de como todas as coisas se produziram na terra — é tarefa que pertence aos teólogos, filósofos e homens de ciência, e não aos historiadores.

Uma prova excelente deste misterioso asilamento é o que podemos chamar — o impulso da arte. Esta criatura foi diferente de todas as demais criaturas, porque foi tão criadora como criada. Nada, neste sentido, pode ser feito sob outra imagem que a imagem do homem. E a verdade é tão verdade, que, ainda sem nenhuma crença religiosa, deve ser admitida em forma de princípio moral ou metafísico. No próximo capítulo veremos este princípio aplicado a todas as hipóteses históricas e éticas evolucionistas, agora em moda; às origens do governo tribal ou crença mitológica. Porém, o exemplo mais claro e mais convincente é o do que o homem da caverna fez na caverna.
Este exemplo quer dizer que, de uma maneira ou de outra, alguma coisa nova apareceu na noite cavernosa da Natureza: uma inteligência que é bem como um espelho. E é bem como um espelho, porque se trata de um fenômeno de reflexão e nela, tão somente, podem ser vistas todas as outras formas, como sombras brilhantes de uma visão, porque, finalmente, e sobretudo – é a única coisa da sua espécie.

Outras coisas podem parecer-se com ela ou entre si em vários sentidos; outras coisas podem superá-la ou superarem-se entre si, igualmente, como no mobiliário de uma casa uma mesa pode ser redonda como um espelho ou um aparador maior do que ele. Mas, o espelho é a única coisa que pode conter todas as demais. O homem é o microcosmo; o homem é a medida de todas as coisas; o homem é a imagem de Deus. Estas são as únicas lições reais que há para aprender nas cavernas; e, já agora, é hora de deixá-las para sair em caminho aberto.
Não obstante, convém explicar, aqui, o que se quer dizer quando se afirma que o homem é a exceção, o espelho e a medida de todas as coisas. Mas, para vê-lo, tal como é, necessitamos, uma vez mais, defrontar-nos com aquela simplicidade que se pode limpar a si mesma das acumuladas nuvens da sofistaria.

A verdade mais singela acerca do homem é que ele é um ser muito estranho; parecendo, quase, um estrangeiro sobre a terra. Pela sua aparência externa mais parece um ser que haja trazido costumes desconhecidos de outras terras do que um ser natural desta que habitamos. Tem uma vantagem injusta e uma injusta desvantagem. Não pode se confiar a seus próprios instintos. É, ao mesmo tempo, um criador que possui mãos milagrosas e uma espécie de mutilado. Envolve-se em bandagens artificiais que se chamam vestidos; apóia-se em umas muletas que se chamam móveis.

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