segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O Despertar dos Mágicos (1). Prefácio


Tenho uma grande falta de habilidade manual e lamento-o.
Seria mais perfeito se as minhas mãos soubessem trabalhar. Mãos que fazem qualquer coisa de útil mergulham nas profundidades do ser e dali extraem uma fonte de bondade e de paz. O meu padrasto (a quem chamarei aqui pai, pois foi ele que me educou) era alfaiate. Tinha uma alma profunda, um espírito verdadeiramente mensageiro. Por vezes dizia, sorrindo, que a traição dos clérigos, principiara no dia em que um deles representou um anjo com asas: é com as mãos que se sobe ao céu.

Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL

A despeito desta falta de habilidade, consegui no entanto encadernar um livro. Tinha dezesseis anos. Era aluno do curso complementar de Juvisy, nuns arrabaldes pobres. Ao sábado à tarde podíamos escolher entre o trabalhar a madeira, o ferro, a modelagem ou a encadernação. Nessa época eu lia os poetas, principalmente Rimbaud. No entanto, impus a mim próprio não encadernar Une Saison en Enfer. Meu pai possuía cerca de trinta livros dispostos no estreito armário da sua oficina, juntamente com os carros de linhas, o giz, os chumaços e os moldes.
Havia também, nesse armário, milhares de notas tomadas numa caligrafia miúda e aplicada, a um canto da banca de alfaiate durante as inumeráveis noites de labor. Entre esses livros eu lera Le Monde avant la Création de l'Homme, de Flammarion, e entregava-me à descoberta, nessa altura, de Para Onde Vai o Mundo? de Walter Rathenau. Foi o livro de Rathenau que resolvi encadernar, não sem custo. Rathenau fora a primeira vítima dos nazistas, e nós estávamos em 1936. Na pequena oficina do curso complementar, aos sábados, eu fazia trabalhos manuais por amor ao meu pai e ao mundo operário. No dia 1 de Maio ofereci-lhe, juntamente com um ramo de junquilho, o Rathenau encadernado.
Nesse livro, meu pai sublinhara a lápis vermelho uma longa frase que nunca mais esqueci:
Mesmo as épocas de opressão são dignas de respeito, pois são a obra, não dos homens, mas da humanidade, e portanto da natureza criadora, que pode ser dura, mas nunca é absurda. Se a época que vivemos é dura, temos o dever de a amar ainda mais, de a penetrar com o nosso amor, até que tenhamos afastado as enormes montanhas
que dissimulam a luz que há para além delas.
Mesmo as épocas de opressão... Meu pai morreu em 1948 sem jamais deixar de crer na natureza criadora, sem jamais deixar de amar e de penetrar com o seu amor o mundo sofredor em que vivia, sem jamais perder a esperança de ver brilhar a luz para além das enormes montanhas. Ele pertencia à geração dos socialistas românticos, que tinham como ídolos Vítor Hugo, Romain Rolland, Jean Jaurès, usavam grandes chapéus e conservavam a pequena flor azul da sentimentalidade entre as pregas da bandeira vermelha. Na fronteira da mística pura e da ação social, o meu pai, preso à sua banca de alfaiate mais de catorze horas por dia - e nós vivíamos à beira da miséria
-conciliava um ardente sindicalismo e uma busca de libertação interior. Nos gestos muito limitados e humildes do seu ofício introduzira um método de concentração e de purificação do espírito a respeito do qual deixou centenas de páginas. Enquanto faziacasas, ou passava a ferro as fazendas, tinha uma presença resplandecente. À quinta¬feira e ao domingo, os meus camaradas reuniam-se à volta da sua banca, para o escutar e sentir aquela presença vigorosa, e a maior parte deles alteraram as suas vidas devido à sua influência.
Cheio de confiança no progresso e na ciência, acreditando na ascensão do proletariado, elaborara uma sólida filosofia. Sentira uma espécie de inspiração ao ler a obra de Flammarion sobre a pré-história. Depois, guiado pela paixão, lera livros de paleontologia, de astronomia, de física. Embora sem preparação, penetrara no âmago dos assuntos. Falava pouco mais ou menos como Teilhard de Chardin, que então desconhecíamos: O que o nosso século vai viver é mais importante do que a aparição do budismo! De futuro já não se trata de dedicar a tal ou tal divindade as faculdades humanas.
É o poder religioso da terra que sofre em nós uma crise definitiva: a da sua própria descoberta. Começamos a perceber, e para sempre, que para o homem a única religião aceitável é a que antes de mais o ensinará a reconhecer, amar e servir apaixonadamente o Universo de que ele é o elemento mais importante . Ele achava que a evolução não se confunde com o transformismo, mas que ela é integral e ascendente, aumentando a densidade psíquica do nosso planeta, preparando-o para tomar contacto com as inteligências dos outros mundos, para se aproximar da própria alma do cosmos.
Para ele, a espécie humana não estava concluída. Ela progredia em direção a um estado de superconsciência, através da ascensão da vida coletiva e da lenta criação de um psiquismo unânime. Dizia que o homem ainda não estava perfeito e salvo, mas que as leis de condensação da energia criadora permitem-nos alimentar, à escala do cosmos, uma formidável esperança. E não perdia de vista essa esperança. Era por isso que julgava com uma serenidade e um dinamismo religiosos os problemas deste mundo, indo procurar muito longe, muito alto, um otimismo e uma coragem imediatamente e realmente utilizáveis.
Em 1948 a guerra terminara, e ressurgiam ameaças de batalhas, desta vez atômicas. No entanto ele considerava as inquietações e os sofrimentos atuais como negativos de uma imagem magnífica. Havia nisso um fio que o unia ao destino espiritual da Terra e espalhava sobre a época de opressão em que terminava a sua vida de trabalhador, apesar de imensos desgostos íntimos, muita confiança e muito amor.
Morreu nos meus braços, na noite de 31 de Dezembro e disse-me, antes de fechar os olhos:
É preciso não contar demasiadamente com Deus, mas talvez Deus conte conosco...
Em que ponto da minha evolução estava eu nesse momento? Tinha vinte e oito anos. Fizera vinte anos em 1940, em plena derrocada. Pertencia a uma geração de transição que assistira ao desmoronar de um mundo, estava separada do passado e desconfiava do futuro. Eu estava longe de acreditar que a época de opressão fosse digna de respeito e que era necessário penetrá-la com o nosso amor. Antes me parecia que a lucidez nos levava a recusar um jogo em que todos fazem batota.
Durante a guerra refugiara-me no hinduísmo. Era o meu mundo. Nele vivia em resistência absoluta. Não procuremos o ponto de apoio na história e entre os homens: escapa-se-nos sem cessar. Procuremo-lo em nós próprios. Sejamos deste mundo como se o não fôssemos. Coisa alguma me parecia tão bela como o pássaro mergulhador da Bhagavad Gita, que mergulha e volta à superfície sem ter molhado as penas. Perante os acontecimentos contra os quais nada podemos, pensava eu, procedamos de forma que eles nada possam contra nós. Permanecia nas alturas, sentado em lódão sobre uma nuvem vinda do Oriente. À noite, meu pai lia às escondidas os meus livros de cabeceira tentando compreender a estranha doença que tanto me afastava dele. Mais tarde, após a Libertação, ofereci a mim próprio um mestre para viver e pensar. Tornei-me discípulo de Gurdjieff. Esforçava-me por me separar das minhas emoções, dos meus sentimentos, dos meus impulsos, a fim de encontrar, para além, qualquer coisa de imóvel e permanente, uma presença muda, anônima, transcendente, que me consolaria da minha pequena realidade e da incongruência do mundo. Julgava meu pai com certa comiseração. Supunha possuir os segredos do governo do espírito e de todo o conhecimento. Na verdade, eu não possuía mais que a ilusão de possuir um enorme desprezo por aqueles que não partilhavam essa ilusão.
Meu pai desesperava-se por minha causa. Eu próprio me desesperava. Mantinha-me obstinadamente numa posição de recusa.
Lia René Guénon. Pensava que tínhamos a pouca sorte de viver num mundo radicalmente pervertido e justamente votado ao apocalipse. Fazia meu o discurso de Cortes à Câmara dos Deputados de Madrid em 1849: Meus senhores, a causa de todos os vossos erros é ignorardes o caminho da civilização e do mundo. Julgais que a civilização e o mundo progridem, e eles retrocedem! Para mim, a idade atual era a idade negra. Entretinha-me a enumerar os crimes do espírito moderno contra o espírito.
Desde o século &I que o Ocidente, separado dos Princípios, corria para a própria destruição. Alimentar qualquer esperança era aliar-se ao mal. Denunciava a mais pequena confiança como uma cumplicidade. Só me restava entusiasmo para a recusa, para a ruptura. Neste mundo cujas três quartas partes já se perdiam no abismo, onde os padres, os sábios, os políticos, os sociólogos e os organizadores de toda a espécie me apareciam como coprófagos, apenas os estudos tradicionais e uma resistência incondicional ao século eram dignos de respeito. Neste estado de espírito chegava a considerar meu pai um ingênuo primário. O seu poder de adesão, de amor, de visão remota irritava-me como coisa ridícula.
Acusava-o de ter permanecido nos entusiasmos da Exposição de 1900. A esperança que ele punha numa coletivização crescente (e colocava-a infinitamente mais acima que o plano político) provocava-me desprezo. Eu só acreditava nas antigas teocracias.

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