sábado, 27 de agosto de 2011

O Despertar dos Mágicos (46). É que Freud e Einstein realizaram, no início, um colossal esforço de imaginação.


E o primeiro tanque do exército de Leclerc transpunha a Porte d'Orléans, sinal humilhante da derrota alemã. Era conduzido por Henri Rathenau, cujo tio Walther fora a primeira vítima do nazismo. Como um homem vítima da maior emoção, assim uma civilização vê, num momento histórico, reviver mil instantes do seu passado, segundo uma escolha e numa sucessão aparentemente incompreensível.

Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL

Giraudoux contava que, tendo adormecido um segundo na ameia de uma trincheira enquanto aguardava a hora de ir render um camarada, morto em reconhecimento, fora acordado por picadas no rosto: o vento acabava de despir o morto, de lhe abrir a carteira e fazer voar cartões de visita, cujos cantos fustigavam a face do poeta. Naquela manhã da Libertação de Paris, os cartões de visita dos emigrados de Coblença, dos estudantes revolucionários de 1830, dos grandes pensadores judeus alemães e dos Irmãos Cavaleiros das Cruzadas esvoaçavam juntamente com muitos outros, sem dúvida, no meio do vento que levava até muito longe os gemidos e as Marselhesas.
Se agitarmos o cesto, todas as bolas vêm à superfície em desordem, ou antes, segundo uma ordem e atritos cujo controlo seria infinitamente complicado, mas onde poderíamos descobrir uma infinidade desses encontros singularmente elucidativos a que Jung chama coincidências significativas. A admirável frase de Jacques Rivière aplica-se às civilizações e seus momentos históricos: Acontece a um homem não o que ele merece, mas o que se lhe assemelha. Um caderno escolar de Napoleão termina com estas palavras: Santa Helena, pequena ilha.
É lamentável que o historiador ache indigno da sua ciência o recenseamento e o exame dessas coincidências significativas, desses encontros que têm um sentido e entreabrem bruscamente uma porta sobre outra face do Universo, onde o tempo já não é linear. A sua ciência está em atraso sobre a ciência em geral, que, tanto no estudo do homem como no da matéria, mostra-nos cada vez mais reduzidas as distâncias entre o passado, o presente e o futuro. Separam-nos sebes cada vez mais estreitas no jardim do destino, de um passado conservado por inteiro e de um amanhã inteiramente formado. A nossa vida, como diz Alain, está aberta sobre grandes espaços.
Existe uma flor extremamente frágil e bela que se chama a saxífraga umbrosa. Também lhe chamam o desespero do pintor. Já não desespera nenhum artista, desde que a fotografia e muitas outras descobertas libertaram a pintura da preocupação da semelhança exterior. O pintor menos jovem de espírito não se senta hoje diante de um ramo de flores como o teria feito outrora. Os seus olhos vêem mais qualquer coisa além do ramo, ou antes, o modelo serve-lhe de pretexto para exprimir por meio da superfície colorida uma realidade escondida para o olhar profano.
Ele tenta arrancar um segredo à criação. Outrora contentar-se-ia em reproduzir o que o profano vê quando passeia sobre as coisas um olhar descuidado, ausente. Ter-se-ia contentado em reproduzir as aparências tranqüilizantes e, de certa maneira, em participar da fraude geral sobre os sinais exteriores da realidade. Ah, isto está escarrado! Mas quem escarra está doente. Não parece que o historiador tenha evoluído como o pintor, no decurso deste meio século, e a nossa história é falsa como o eram um seio de mulher, um gatinho ou um ramo de flores sob o pincel petrificante de um pintor conformista de 1890. use a nossa geração, diz um jovem historiador, pretende examinar lucidamente o passado, terá em primeiro lugar de arrancar as máscaras sob as quais os artífices da nossa História se mantêm desconhecidos. . . O esforço desinteressado realizado por uma falange de historiadores em favor da simples verdade é relativamente recente.
O pintor de 1890 tinha os seus desesperos. Que dizer do historiador do presente! A maior parte dos fatos contemporâneos tornaram-se semelhantes à saxífraga umbrosa: desesperos do historiador.
Um autodidata delirante, rodeado de alguns megalômanos, recusa Descartes, despreza a Cultura humanista, destrói a razão, invoca Lúcifer e conquista a Europa, perdendo por pouco a conquista do Mundo. O marxismo enraíza-se no único país que Marx achava infecundo. Londres arrisca-se a soçobrar sob uma chuva de foguetões destinados a atingir a Lua. Reflexões sobre o espaço e o tempo conjugam-se na fabricação de uma bomba que destrói duzentos mil homens em três segundos e ameaça destruir a própria história. Saxífragas umbrosas!
O historiador começa a inquietar-se e a duvidar de que a sua arte seja praticável. Perde
o seu talento lamentando já não o poder exercer. É o que se vê nas artes e nas ciências nos períodos de sufocação: um escritor trata em dez volumes da impossibilidade da linguagem, um médico dá aulas durante cinco anos para explicar que as doenças se curam por si próprias. A história atravessa um desses momentos.
Raymond Aron, desprezando com enfado Tucídides e Marx, constata que nem as paixões humanas, nem a economia dos fatos chegam para explicar a aventura das sociedades. A totalidade das causas que determinam a totalidade dos efeitos ultrapassa, diz ele desolado, o entendimento humano.
O sr. Baudin, do Instituto, confessa: a história é uma página em branco que os homens têm a liberdade de preencher à sua vontade.
E René Grousset dirige ao céu vazio este cântico quase desesperado, mas belo:
Aquilo a que nós chamamos a história, quero dizer, este desenrolar de impérios, de batalhas, de revoluções políticas, de datas, sangrentas a maior parte, será realmente a história? Confesso que não o creio, e que me acontece, ao ver os manuais escolares, riscar em pensamento uma grande parte. . .
A verdadeira história não é aquela do movimento das fronteiras. É a das civilizações. E a civilização é, por um lado, o progresso das técnicas e, por outro, o progresso da espiritualidade. Podemos perguntar a nós próprios se a história política não é, em grande parte, uma história parasita.
A verdadeira história é, sob o ponto de vista material, a das técnicas, disfarçada sob a história política que a oprime, que lhe usurpa o lugar e até mesmo o nome.
Mas, mais ainda, a verdadeira história é a do progresso do homem na espiritualidade. A função da humanidade é auxiliar o homem espiritual a libertar-se, a realizar-se, a auxiliar o homem, como dizem os hindus numa fórmula admirável, a ser aquilo que é. É certo que a história aparente, a história visível, a história da superfície não passa de um ossuário. Se a história fosse apenas isso, não havia mais nada a fazer senão fechar o livro e desejar a extinção no nirvana... Mas quero crer que o budismo mentiu e que a história não é isso.
O físico, o químico, o biólogo, o psicólogo sofreram, nestes últimos cinqüenta anos, grandes choques e tropeçaram, por sua vez, em saxífragas umbrosas. Mas hoje não manifestam a mesma inquietação. Trabalham, avançam. Muito pelo contrário, há na suas ciências extraordinária vitalidade. Comparem-se as construções acrobáticas de Spengler ou de Toynbee ao movimento torrencial da física nuclear. A história está num beco sem saída. As razões, sem dúvida, são múltiplas, mas esta impressionou-nos:
Ao passo que o físico ou o psicanalista abandonou resolutamente a idéia de que a realidade era necessariamente satisfatória para a razão e optou pela realidade do fantástico, o historiador manteve-se encerrado no cartesianismo. Uma certa pusilanimidade muito política nem sempre é alheia ao fato.
Diz-se que os povos felizes não têm história. Mas os povos que não têm historiadores franco-atiradores e poetas são mais que infelizes: asfixiados, traídos.
Voltando as costas ao fantástico, por vezes o historiador é levado a erros extraordinários. Marxista, prevê o desmoronamento da economia americana no momento em que os Estados Unidos atingem o mais alto nível de estabilidade e de poder. Capitalista, determina no Oeste a expansão do comunismo no momento em que a Hungria se revolta. No entanto, noutras ciências, a previsão do futuro, a partir dos dados do presente, tem cada vez mais êxito.
A partir de um milionésimo de grama de plutônio, o físico nuclear faz o projeto de uma fábrica gigantesca que funcionará de acordo com o que foi previsto. A partir de alguns sonhos, Freud desvenda a alma humana como nunca foi feito.
É que Freud e Einstein realizaram, no início, um colossal esforço de imaginação. Imaginaram um real completamente diferente dos dados racionais admitidos. A partir dessa projeção imaginativa estabeleceram conjuntos de fatos que a experiência verificou
No domínio da ciência aprendemos quão vasta é a estranheza do mundo, diz Oppenheimer.
Que esta aceitação da estranheza possa enriquecer a história, é do que estamos persuadidos.
Não pretendemos de forma alguma produzir no método histórico as alterações que lhe desejamos. Mas pensamos que o pequeno esboço que vão ler pode prestar algum serviço aos futuros historiadores. Seja estímulo, seja repulsão. Pretendemos, ao tomar como objeto de estudo um aspecto da Alemanha hitleriana, indicar vagamente uma direção de pesquisas válida para outros assuntos. Traçamos flechas sobre as árvores ao nosso alcance. Mas não pretendemos ter tornado praticável toda a floresta.
Procuramos reunir fatos que um historiador normal repudiaria com cólera ou horror. Transformamo-nos por algum tempo, segundo a bela frase de Maurice Renard, em amadores do insólito e escribas de milagres. Este gênero de trabalho nem sempre é confortável para o espírito. Por vezes tranqüilizavamo-nos pensando que a teratologia, ou estudo dos monstros, com que se distinguiu o professor Wolff a despeito da desconfiança dos sábios razoáveis, esclareceu muitos aspectos da biologia. Serviu-nos de apoio outro exemplo: o de Charles Fort, esse americano malicioso de que já falamos.
Foi dentro do espírito fortiano que orientamos as nossas investigações sobre acontecimentos da história recente. Portanto, não nos pareceu indigno de atenção o fato de o fundador do nacional-socialismo ter realmente acreditado na vinda do super-homem.
A 23 de Fevereiro de 1957, um homem-rã procurava o corpo de um estudante afogado no Lago do Diabo, na Boêmia. Regressou à superfície, pálido de pavor, incapaz de articular um som. Quando recuperou o uso da palavra revelou que acabava de ver, sob as águas frias e densas do lago, um alinhamento fantasmagórico de soldados alemães de uniforme, e uma caravana de carros atrelados, com os cavalos em pé.
Ó Noite, o que significam esses guerreiros lívidos? . . . De certa maneira, também nós mergulhamos no Lago do Diabo. Nos anais do processo de Nuremberg, em milhares de livros e de revistas e nos testemunhos pessoais, reunimos uma coleção de singularidades. Organizamos o nosso material em função de uma hipótese de trabalho que talvez não fôssemos capazes de elevar à dignidade de uma teoria, mas que um grande escritor inglês desconhecido, Arthur Machen, brilhantemente exprimiu : Existem à nossa volta sacramentos do mal, da mesma forma que existem sacramentos do bem, e a nossa vida e os nossos atos desenrolam-se, segundo creio, num mundo insuspeitado, cheio de cavernas, sombras e habitantes crepusculares. A alma humana ama o dia. Acontece-lhe também amar a noite, com igual ardor, e esse amor pode conduzir os homens, como as sociedades, a ações criminosas e desastrosas que aparentemente desafiam a razão, mas que, no entanto, se revelam explicáveis se nos colocarmos numa determinada óptica. Precisaremos o caso um pouco adiante ao dar de novo a palavra a Arthur Machen.
Nesta parte do nosso trabalho pretendemos fornecer a matéria-prima de uma história invisível. Não somos os primeiros. John Buchan já assinalara estranhas correntes subterrâneas sob os acontecimentos históricos. Uma entomologista alemã, Margaret Boveri, tratando dos homens com a frieza objetiva que utiliza na observação dos insetos, escreveu uma História da Traição no Século Vinte, cujo primeiro volume tem por título História Visível e o segundo História Invisível.
Mas de que história invisível se trata? O termo é cheio de armadilhas. O visível é tão rico e, no fim de contas, ainda tão pouco explorado, que se lhe pode sempre descobrir fatos que justificam não importa que espécie de teoria, e conhecem-se inúmeras explicações da história devido à ação oculta dos Judeus, dos Franco-Maçons, dos Jesuítas ou do Banco Internacional. Essas explicações parecem-nos primárias. Aliás, constantemente evitamos confundir aquilo a que chamamos o realismo fantástico com o ocultismo, e as molas secretas da realidade com o folhetim. (No entanto notamos muitas vezes que a realidade era falha de dignidade: ela não escapa ao romanesco e não se podem eliminar fatos sob o pretexto de que parecem sair, justamente, de um folhetim.)
Acolhemos portanto os fatos mais bizarros sob a reserva de os podermos autenticar. Por vezes preferimos dar a impressão de procurar o sensacional ou de nos deixarmos arrastar pelo gosto do estranho, a descurar tal aspecto aparentemente demencial. q resultado em nada se assemelha aos retratos da Alemanha nazista geralmente admitidos. A culpa não é nossa. Tínhamos por objeto de estudo uma série de acontecimentos fantásticos. Não é habitual, mas é lógico pensar que, atrás desses acontecimentos, podem esconder-se realidades extraordinárias. Por que motivo teria a história o privilégio sobre as outras ciências modernas de poder explicar todos os fenômenos de maneira satisfatória para a razão?
Imagem: Louis Pauwels

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