quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Despertar dos Mágicos (44). Quantos loucos ou epilépticos houve nos seus ascendentes ou parentes?


O enviado do Novo Vaticano foi calorosamente acolhido, como é da praxe. Instalaram¬no nos aposentos reservados aos prelados de passagem e puseram-lhe às ordens seis jovens noviços atentos a satisfazer os seus mínimos desejos. Abriram em sua honra as melhores garrafas, assaram-se as mais delicadas aves e chegaram ao ponto de se preocupar com as suas distrações, arranjando-lhe, todas as noites, vários violinistas e uma companhia inteira de palhaços.

Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL

Havia três dias que o bispo ali estava quando o bom Padre Abade fez comparecer diante dele Frei Francis.
- Monsenhor Di Simone deseja vê-lo - disse-lhe. Se tiver a infelicidade de dar livre curso à sua imaginação, atiraremos a sua carcaça aos lobos e os seus ossos serão sepultados em terra que não seja sagrada... Agora, meu filho, vá em paz: Monsenhor está à sua espera.
Frei Francis não tinha a menor necessidade da advertência do bom Padre para refrear a língua. Desde o longínquo dia em que a febre o tornara loquaz, depois da primeira Quaresma passada no deserto, evitara falar fosse a quem fosse no encontro com o peregrino. Mas perturbava-o ver que as maiores autoridades eclesiásticas se interessavam bruscamente por esse mesmo peregrino, por isso o coração batia-lhe com força quando se apresentou diante do bispo.
Aliás o seu pavor revelou-se sem o menor fundamento.
O prelado era um velho muito paternal, que parecia interessar-se acima de tudo pela carreira do fradinho.
E agora -disse-lhe ele, após alguns momentos de amena conversa -, fale-me do encontro que teve com o vosso Bem-Aventurado fundador.
Oh, Monsenhor! Eu nunca disse que se tratava do Bem-Aventurado Leibo. . .
Claro, meu filho, claro... Aliás, trouxe-lhe um auto dessa aparição. Foi elaborado segundo informações recolhidas nas melhores fontes. Peço-lhe apenas para o ler. Após o que me confirmará a exatidão do mesmo, ou, se for necessário, corrigi-lo-á. Bem entendido, este documento baseia-se apenas no que se diz. Na realidade, só o Frei Francis nos pode dizer o que na verdade se passou. Peço-lhe portanto para o ler muito atentamente. Frei Francis pegou no espesso maço de papéis que o prelado lhe estendia e começou a ler a descrição oficial com uma apreensão cada vez maior, que não tardou em degenerar num verdadeiro pavor.
-Muda de expressão, meu filho - notou o bispo. – Terá constatado algum erro?
- Mas. . . mas. . . não foi assim. . . não foi nada assim que as coisas se passaram! -exclamou o desgraçado monge, aterrado. -Só o vi uma vez e ele limitou-se a perguntar-me o caminho para a abadia. Depois bateu com o bordão sobre a pedra debaixo da qual descobri as relíquias. . . - Se estou a compreender bem, não houve então coro celestial?
Oh, não!
Nem auréola em redor da sua cabeça, nem tapete de rosas desenrolando-se sob os seus passos à medida que ele avançava?
Perante Deus que me observa, Monsenhor, afirmo que nada disso aconteceu!
-Bom, bom - disse o bispo suspirando. - Bem sei que as histórias que os viajantes narram contêm sempre uma grande dose de exagero. . .
Como parecia desiludido, Frei Francis apressou-se a pedir desculpas, mas o advogado do futuro santo acalmou-o com um gesto:
-Não tem importância, meu filho - assegurou-lhe. -Não nos faltam milagres, devidamente controlados, graças a Deus!.. Em todo o caso os papéis que descobristes tiveram pelo menos uma utilidade, visto que nos permitiram descobrir o nome da esposa do vosso venerável fundador, a qual morreu, como sabe, antes de ele se dedicar à religião.
Realmente, Monsenhor?
Sim. Chamava-se Emília.
Manifestamente muito desapontado com a descrição que o jovem monge lhe fizera do encontro com o peregrino, Monsenhor Di Simone nem por isso deixou de passar cinco dias inteiros no local onde Francis descobrira a caixa de metal. Acompanhava-o uma corte de noviços, agitando pás e enxadas... Depois de terem cavado muito fundo, o bispo regressou à abadia, na noite do quinto dia, com um rico espólio de diversas relíquias, entre as quais uma velha caixa de alumínio que continha ainda alguns vestígios de uma massa ressequida que talvez tivesse sido outrora, choucroute.
Antes de deixar a abadia, visitou a sala dos copistas e quis ver a reprodução que Frei Francis tinha feito do célebre papel azul de Leibowitz. O monge, ao mesmo tempo que protestava dizendo tratar-se de coisa sem importância, exibia-o com mão trêmula.
Arre! exclamou o bispo (pelo menos foi o que julgaram ouvir). É preciso terminar este trabalho, meu filho, é preciso!
Sorridente, o monge procurou o olhar de Frei Jeris. Mas o outro apressou-se a voltar a cabeça... No dia seguinte, Frei Francis metia novamente mãos à obra, com grande reforço de penas de pato, folhas douradas e variados pincéis.
... Continuava ocupado naquela tarefa quando se apresentou no convento uma nova delegação vinda do Vaticano. Desta vez tratava-se de um grupo numeroso, incluindo mesmo guardas armados para impedir os ataques dos salteadores de estrada.
À cabeça, orgulhosamente montado numa mula preta, pavoneava-se um prelado com a cabeça ornamentada com pequeninos chifres e a boca com longos colmilhos acerados (foi, pelo menos, o que mais tarde afirmaram vários noviços). Apresentou-se como o Advocatus Diaboli, encarregado de se opor por todos os meios à canonização de Leibowitz, e explicou que vinha à abadia para investigar sobre certos boatos absurdos, postos a circular por fradinhos histéricos, e cujo rumor chegara aos ouvidos das autoridades supremas do Novo Vaticano. Bastava olhar para aquele emissário para imediatamente ver que não era pessoa que se deixasse enganar.
O Abade acolheu-o delicadamente e ofereceu-lhe um pequeno leito todo de ferro, numa cela exposta ao sul, pedindo desculpa por não o poder alojar nos aposentos de honra, provisoriamente inabitáveis por uma questão de higiene. Este novo hóspede contentou¬se, para o seu serviço, com as pessoas do seu séqüito e, no refeitório, partilhou das refeições habituais dos monges: ervas cozidas e caldo de raízes.
Disseram-me que está sujeito a crises nervosas, com perda de sensibilidade - disse ele a Frei Francis quando o monge compareceu na sua frente. - Quantos loucos ou epilépticos houve nos seus ascendentes ou parentes?
Nenhum, Excelência.
Não me chame Excelência! - rugiu o dignitário.E fique sabendo que não terei a menor dificuldade em fazer-lhe dizer toda a verdade.
Falava do assunto como de uma intervenção cirúrgica das mais banais e era visível que achava que deveria ter sido feita há muitos anos.
-Não ignora - continuou - que existem processos para envelhecer artificialmente os documentos, não é verdade? Frei Francis ignorava-o.
- Sabe igualmente que a mulher de Leibowitz se chamava Emília e que Ema não é de forma nenhuma o diminutivo desse nome?
Francis também não tinha grandes conhecimentos a respeito do assunto. Lembrava-se simplesmente que os pais, na sua infância, empregavam por vezes certos diminutivos um pouco ao acaso... E depois, pensou, se o Bem-Aventurado Leibowitz abençoado seja ele! -decidiu chamar Ema à mulher, estou certo de que sabia o que fazia.. .
O enviado do Novo Vaticano começou então a dar-lhe uma lição de semântica com tamanha impetuosidade que o pobrezinho do frade julgou que ia enlouquecer. No final dessa tumultuosa sessão já nem sequer sabia se alguma vez encontrara ou não um peregrino.
Antes da partida, o Advogado do Diabo quis também ver a cópia iluminada que Francis fizera e o pobre apresentou-lha com a morte na alma. O prelado, a princípio, pareceu atrapalhado; depois engoliu em seco e fez um esforço para dizer qualquer coisa.
-É evidente que não lhe falta imaginação. Mas, quanto a isso, creio que já todos o sabiam aqui.
Os chifres do emissário tinham encurtado vários centímetros e ele partiu nessa mesma noite para o Novo Vaticano.
... E os anos passaram, acrescentando algumas rugas aos rostos juvenis, alguns cabelos brancos às têmporas dos monges.
No mosteiro a vida corria como de costume, e os monges continuavam absorvidos nas suas cópias, como antigamente. Frei Jeris, um belo dia, resolveu construir uma prensa para imprimir. Quando o abade lhe perguntou o motivo só soube responder:
Para aumentar a produção.
Ah, sim? - disse o Padre. - E para que pensa que poderiam servir as suas papeladas, num mundo em que se é tão feliz por não saber ler? Talvez as possa vender aos camponeses para acenderem o lume, não acha?
Mortificado, Frei Jeris encolheu tristemente os ombros e os copistas do mosteiro continuaram a trabalhar com penas de pato. . .
Numa manhã de Primavera, um pouco antes da Quaresma, apresentou-se no mosteiro um novo mensageiro trazendo uma boa, excelente notícia: os documentos reunidos para a canonização de Leibowitz já estavam completos, o Sacro Colégio não tardaria a reunir-se e o fundador da Ordem dos Albertianos em breve figuraria entre os santos do calendário.
Enquanto toda a confraria se regozijava, o Padre Abade muito velho, atualmente, e bastante gagá - mandou chamar Frei Francis.
Sua Santidade exige a sua presença por ocasião das festas que se vão realizar para a Canonização de Isaac Edward Leibowitz - cuspinhou ele. - Prepare-se para partir. E acrescentou num tom resmungão:
Se deseja desmaiar, vá fazê-lo para longe daqui!
A viagem do jovem monge até ao Novo Vaticano exigiria pelo menos três meses ¬talvez mesmo mais: tudo dependia da distância que pudesse percorrer antes que os inevitáveis salteadores de estrada o privassem do seu burro.
Partiu só e sem armas, munido apenas de uma gamela de mendigo. Apertava contra o coração a cópia iluminada do plano de Leibowitz e pedia a Deus, enquanto avançava, que não lho roubassem. . . É verdade que os ladrões eram pessoas ignorantes e não saberiam que destino lhe dar. . . Por precaução, apesar de tudo, o monge ostentava um pedaço de tecido negro sobre o olho direito. Os camponeses eram supersticiosos, de fato, e a simples ameaça de mau olhado bastava por vezes para os pôr em fuga.
Após dois meses e alguns dias de viagem, Frei Francis encontrou o seu gatuno, num atalho da montanha ladeado por espesso mato, longe de qualquer habitação. Era um homem baixo, mas visivelmente sólido como um boi. As pernas afastadas, os braços vigorosos cruzados sobre o peito, estava parado a meio do atalho, à espera do monge, que ia lentamente ao seu encontro, no passo vagaroso da sua montada... Parecia estar só e como arma apenas tinha uma faca que nem sequer retirou do cinto. O encontro causou grande desapontamento ao monge: de fato, no íntimo do seu coração, não cessara de acreditar que, ao longo do caminho, encontraria o peregrino de outrora.
- Alto! - ordenou o ladrão.
O burro parou por sua livre vontade. Frei Francis ergueu o capuz para mostrar a pala preta e dela aproximou lentamente a mão, como se se preparasse para revelar qualquer espetáculo horrível, dissimulado sob o tecido. Mas o homem, atirando a cabeça para trás, soltou um riso sinistro e verdadeiramente satânico.
O monge apressou-se a murmurar um exorcismo, com o qual o ladrão não pareceu impressionado.
- Há muitos anos que isso não pega - disse ele.Vamos, salta para o chão, e depressa!
Frei Francis encolheu os ombros, sorriu e desceu da montada sem protestar.
- Desejo-lhe muito boa tarde, senhor! - disse num tom amável. - Pode ficar com o burro, a caminhada far-me-á bem. E já se afastava, quando o ladrão lhe barrou o caminho.
- Espera! Despe-te todo, e mostra-me o que há dentro desse embrulho!

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