Seu entendimento tem tantas liberdades como limitações. Só ele, entre todos os animais, é capaz de agitar-se na famosa loucura que chamamos riso. Só ele, entre todos os animais, sente a necessidade de separar os seus pensamentos das realidades de seu próprio corpo, de ocultá-las, como se encontrasse ante uma mais alta possibilidade que cria o mistério do pudor.
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Podemos elogiar estes costumes, como naturais no homem, ou censurá-los como artificiais na Natureza. Mas, sempre permanecerão como o mesmo sentido de coisa única. Isto está comprovado pelo instinto popular chamado religião, em que pese aos laboriosos pedantes da vida simples. Os mais sofísticos de todos os sofistas são os “ginosofistas”. [8]
Porque, indubitavelmente, é antinatural o considerar-se o homem como um produto natural. É pecar contra o espírito, animalizá-lo – contra este espírito de realidade, que está feito do senso das proporções – E fico temeroso ao dizer “antinatural”, pois, enfim, se imaginamos que uma inteligência inumana ou impessoal pôde ter sentido ou captado a natureza geral do mundo não humano, com o vigor suficiente para poder ver que as coisas se desenvolveriam pela maneira que se desenvolveram, nada teria havido em todo esse mundo natural que preparasse essa inteligência para tal novidade tão natural.
O aparecimento do homem não lhe faria sequer o efeito benigno de um rebanho, entre cem, que descobre uma melhor pastagem, ou de uma andorinha, entre mil, que se extravia sob céus mais risonhos. Teria a impressão, não de uma modificação parcial das proporções, senão de um salto à quarta dimensão, como se uma vaca saltasse veloz, por cima da lua ou se um porco voasse. Para encontrar um paralelo, fora preciso não somente que as bestas escolhessem seus pastos, senão que construíssem, também, os seus estábulos; não somente que a andorinha descobrisse a Costa Azul, mas que edificasse a sua casa de veraneio.
Pois o fato mesmo dos pássaros fazerem ninhos relevaria, surpreendentemente, uma diferença inexplicável se o homem não fosse mais que um animal. Que, com efeito, cheguem a construir os ninhos que nós vemos e neles guarneçam, prova isso mais a essencial solução de continuidade entre o seu cérebro de passarinho e o cérebro humano do que se não edificassem nada. Neste caso, poderíamos lhes atribuir uma atitude filosófica, impregnada de quietismo ou de budismo, indiferente a tudo o que não é contemplação interior. Mas, desde o instante em que o pássaro edifica como o faz, regozija-se disso e gorjeia de contentamento, percebemos entre ele e nós outros um véu invisível, uma dessas vidraças contra as quais tantos pássaros se chocam em vão.
Imaginemos, agora, ao contrário, que o nosso observador abstrato, não humano, vê um pássaro construindo à maneira dos homens e que em um nada de tempo faz uso de sete estilos distintos de arquitetura que esse construtor empenado escolhe, com carinho, raminhos cortados e folhas ponteagudas para expressar a piedade aguda do gótico; mas, em troca, provê-se de largas folhagens e de barro escuro quando sombras humanas o induzem a empregar os pesados pilares de Baal e Astartéia [9] na decoração de um ninho que seja um verdadeiro jardim suspenso de Babilônia.
Suponhamos que faça estatuetas de argila com a figura dos voláteis mais reputados nas letras, ciências e artes, para adornar a fachada de sua moradia. Em uma palavra: suponhamos que um pássaro, entre mil, empreende, um belo dia, qualquer das ações que os homens têm levado a cabo desde a aurora dos tempos, e não duvidaremos dos sentimentos do idealizado espectador. Não verá neste pássaro uma sub-variedade em transe de diferenciar-se, segundo o curso normal da evolução das espécies, senão que um prodígio, um augúrio; o sinal não de um acontecimento futuro, senão de um fato realizado: o advento de um espírito semelhante ao espírito humano. Se não houvera Deus, nenhuma outra inteligência fora capaz de prevê-lo.
De fato, não há nem sombras de indicação de que a inteligência humana se tenha formado por evolução natural. Existe, quiçá, uma cadeia rompida de pedras e de ossamentas para sugerir vagamente certo desenvolvimento do corpo do homem; entretanto, nada de parecido existe referente ao seu espírito.
Não era, e foi; eis o que todos nós sabemos, que não encontra seu lugar em nenhuma parte no tempo nem no espaço, e que escapa, por conseguinte, ao domínio da história. Sendo a missão do historiador mais registrar do que explicar, não experimentará nenhum pudor aceitando este fato sem comentário biológico, por isso que é realidade. Pouco importa que o homem seja inverossímil: uma vez que é verdade e que é real, - é uma almofada macia para uma cabeça bem feita. “E” – e isto basta à maioria de nós outros.
Não obstante, haverá, sempre, espíritos curiosos, ávidos de conceber, para perguntar mais e querer ver, absolutamente, no homem, uma criação que não faça dele um monstro. A estes eu direi: Quereis, verdadeiramente, uma explicação realista que devolva o ser humano ao quadro original, sem o que será um escândalo para a vossa razão? Quereis assistir a uma “evolução” que concorde com a realidade de sua natureza física e moral? Quereis contemplá-lo, finalmente, na áspera lucidez de seu dia verdadeiro? Dirigi-vos a outra parte; remontai o curso de memórias simples e formidáveis e ide despertar os sonos dormidos, pois é preciso evocar muitas vezes outras causas afim de encontrar uma origem para o homem, e invocar outra autoridade para lhe dar uma figura razoável ou, unicamente, admissível. No termo da rota acha-se tudo o que é, a um mesmo tempo, horrível, familiar e esquecido, com rostos e braços espantosos e enfurecidos. Aceitemos o homem como um fato, se nos é bastante um fato inexplicável; aceitemo-lo como animal, se nos convêm viver em meio de animais fabulosos.
Mas, se nos é necessário uma lógica, uma seqüência, então, precisaremos de um prodigioso prelúdio, de um crescendo de milagres desencadeados, para que, - engendrado em meio de trovões inconcebíveis, que estremeçam, até o sétimo céu – a ordem natural – o homem pareça, enfim, uma criatura comum.
(“The Everlasting Man”, 1o. cap., trad. Lourival Cunha, Editora O Globo de Porto Alegre, 1934.)
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Notas:
[1] Tosão de Ouro – Lenda maravilhosa no mundo grego. Veio do carneiro que levou pelos ares Phrixos e Helle à Colchida. Aí, depois de imolarem o carneiro a Zeus presentearam-no a Aetes, rei dos país, que o fazia guardar por um dragão. Deu origem à expedição dos argonautas organizada por Jasonos argonautas organizada por Jason. Jardim das Espérides – Jardim maravilhoso, cheio de pomos de ouro, guardado por um dragão de cem cabeças, onde viviam as três ninfas filhas da Noite – Aegles, Erithéa e Héspera. (N. do T.)
[2] Morris William – Poeta, pintor e crítico de arte inglês. O livro “Raízes das Montanhas”,1890 , consagrou toda a sua riqueza e gênio em melhorar as coisas visíveis e em propagar novos ideais.
[3] Balham – Subúrbio aristocrático de Londres.
[4] Vitória - época da rainha Vitória da Inglaterra.
[5] De outra gruta ... – O autor refere-se ao nascimento de Cristo no estábulo de Belém, cavado na terra.
[6] Mougle – Mowgli.
[7] Perogrullo – Personagem fantástica, a quem se atribuem verdades sediças.
[8] Ginosofistas – De gumnos, nu, e sophos sábio – Filósofo de uma seita da Índia, cujos membros viviam nus.
[9] Baal e de Astartéia – Templos erigidos ao deus Baal, Bel ou Belus dos fenícios e à sua mulher Astartéia – Baal era o deus supremo. Astartéia era considerada alternativamente como deusa virgem e deusa mãe.
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