Se desejarmos ver, realmente, este aspecto da manhã do mundo será, por todos os conceitos, preferível conceber a história do seu descobrimento como uma legenda da terra do sol nascente.
http://www.permanencia.org.br/revista/Pensamento/chesterton1.htm
Será preferível narrar o conto do que se descobriu, com a simplicidade do conto dos heróis que encontraram o Tosão de ouro ou do Jardim das Hespérides [1]. Há que fugir das névoas da controvérsia para encontrar as cores vivas e as linhas destacadas de um verdadeiro amanhecer. Os investigadores modernos deviam descrever seus descobrimentos no estilo límpido da narrativa dos primeiros viajantes, despido dessas extensas palavras alusivas e de um sentido confuso e indireto.
Um sacerdote e um menino penetraram, há algum tempo, no subterrâneo de uma montanha e passaram através de uma espécie de túnel que conduzia a um labirinto de corredores.
Passaram por caminhos que pareciam intransitáveis; desceram gargantas que eram como poços, como se estivessem enterrados vivos, sem esperança de ressurreição. Tudo isto não é mais do que o lugar comum de tais valorosas explorações; porém, do que se necessita, é de alguém que foque sobre tais histórias uma luz primária, e, então, o lugar comum deixará de sê-lo. Porque, não há de duvidar, existe alguma coisa de simbólico no fato de que os primeiros que entraram em tão oculto mundo foram precisamente, um sacerdote e um menino, os tipos da antiguidade e da infância do mundo.
Ainda que, nesta conjectura, mais me refiro ao simbolismo do menino do que ao do sacerdote.
Que alegria para o menino entrar, como Peter Pan, em baixo de um teto formado pelas raízes de todas as árvores, e seguir baixando, baixando até chegar ao ponto que William Morris chamava as verdadeiras raízes das montanhas![2]
Suponhamos alguém de posse desse sentido simples da realidade, que forma parte da inocência, seguindo, nessa viagem, até o fim, não pelo egoísmo de deduzir ou de demonstrar alguma coisa, senão, simplesmente, pelo prazer de realizar a aventura.
A secreta câmara rochosa, iluminada depois de inumeráveis anos, mostrou em suas paredes grandes desenhos e pinturas, feitos com argilas de diferentes cores. Eram desenhos e pinturas realizados, não só por um homem, senão por um artista. Com todas as limitações imposta pela época, aqueles artistas primitivos demonstravam um grande amor pela linha curva ondulante, amor que reconhecerá, imediatamente, qualquer pessoa que saiba ou intente desenhar. Aqueles desenhos demonstravam o gênio experimental e aventureiro do artista, o espírito de quem não evita senão procura a dificuldade. Sobretudo, no caso daquele cervo pintado com a cabeça voltada para a anca, numa atitude que freqüentemente surpreendemos nos cavalos, e que muitos desenhistas de animais só reproduzem com dificuldades. Uma multidão de detalhes semelhantes denota o interesse e, sem dúvida, o prazer com que o artista, mas também como naturalista. Isto é: como naturalista verdadeiramente natural.
Não será necessário indicar, senão de passagem, que nada, nessa caverna, sugere a atmosfera pessimista da caverna, segundo as narrações em voga.
Certamente que não é ideal de um caráter não humano passar o tempo pintando animaizinhos nas paredes. Quando novelistas, pedagogos e psicólogos falam do troglodita, não podem concebê-lo em relação com o que existe, realmente, em suas cavernas. Quando o novelista escreve: “Saltavam chispas no cérebro de Dagmar Doubledick, o qual sentia despertar em si o homem das cavernas”, o leitor sofreria uma grande desilusão se soubesse que nas cavernas nada mais existe do que inofensivos desenhos de animais.
Quando o psicanalista escreve a um parente dizendo que “os instintos adormecidos do homem das cavernas podem levá-lo a um ato de violência”, não se refere ao instinto de pintar à aquarela nem de desenhar com simplicidade, diretamente do natural, cabeças de gado pastando mansamente.
Entretanto, sabemos, positivamente, que o troglodita fazia estas coisas inocentes, e, em troca, não temos a menor prova de que realizasse as ferocidades de que se nos fala. Em outros termos: o homem das cavernas se nos apresenta freqüentemente como um simples mito ou, melhor, como uma vacuidade, porque o mito é, ao menos, a representação imaginativa de uma verdade.
Em resumo: tudo quanto se diz da brutalidade do homem das cavernas não é mais do que pura confusão, que não tem apoio em nenhuma evidência científica, e que só serve, de certo modo, para desculpar o moderno espírito de anarquia. O cavalheiro que necessite castigar a uma mulher, que o faça sem desonrar o homem das cavernas, de quem sabemos, apenas, coisa muito diferente – que pintava coisas muito agradáveis nas paredes.
Mas, não é esta a lição de moral que se deduz dessas pinturas. É uma lição muito mais vasta e muito mais simples, tanto assim, que, até, pode parecer pueril. E, com efeito, no mais elevado sentido da palavra, é, mesmo, pueril.
Por isso, precisamente, tratei de vê-la neste apólogo com os olhos de um menino. O fato de maior consideração, com que se defrontou esse menino que entrou na caverna, é tão grande que, talvez, por isso mesmo seja difícil acreditá-lo.
Se ele era uma ovelha do rebanho espiritual do sacerdote, pode-se presumir que fora educado no cultivo do senso comum, desse senso comum que, freqüentemente se nos aparece sob a forma de tradição. Neste caso, reconheceria, simplesmente, a obra do troglodita, como obra de um homem, interessante, desde logo, mas não incrível, por tratar-se de um primitivo. Veria, sem dúvida, o que, de fato, ali havia para ver, não caindo na tentação de ver o que não existia, excitado por uma inclinação evolucionista ou por qualquer outra especulação da moda.
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