terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O Despertar dos Mágicos (2) suavemente os primeiros compassos do Hino à Alegria de Beethoven


Einstein fundava um núcleo desesperado dos sábios do átomo, a ameaça de uma
guerra total pairava sobre a humanidade dividida em dois blocos. Meu pai morria sem nada ter perdido da sua fé no futuro, e eu já não o compreendia. Não evocarei, nesta obra, os problemas de classe. Não é o lugar adequado.

Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL

Mas sei muito bem que esses problemas existem, pois crucificaram o homem que me amava. Não conheci o meu verdadeiro pai. Ele pertencia à velha burguesia de Gante. Tanto minha mãe como o meu segundo pai eram operários, descendiam de operários. Foram os meus antepassados flamengos, folgazões, artistas, ociosos e orgulhosos, que me afastaram do pensamento generoso, dinâmico, que me fizeram desprezar e ignorar a virtude da participação. Há muito tempo já que existia uma barreira entre meu pai e eu.
Ele que não quisera outro filho além deste que não era do seu sangue, com receio de me prejudicar, sacrificara-se para que eu me tornasse um intelectual. Tendo-me dado tudo, idealizara a minha alma semelhante à dele. A seus olhos eu devia tornar-me um farol, um homem capaz de esclarecer os outros homens, de lhes dar coragem e esperança, de lhes mostrar, como ele dizia, a luz que brilha no fundo de nós.
Mas eu não via qualquer espécie de luz, senão a luz negra, em mim e no fundo da humanidade. Não passava de um letrado semelhante a tantos outros. Levava até às suas conseqüências extremas esse sentimento de exílio, essa necessidade de revolta radical que se exprimia nas revistas literárias por volta de 1947, ao falar de inquietação metafísica, e que constituíram a complicada herança da minha geração.
Nestas condições, de que maneira ser um farol? Esta idéia, expressão à Vítor Hugo faziam-me sorrir maldosamente. Meu pai censurava-me por me deixar corromper, por ter passado, como ele dizia, para o lado dos privilegiados da cultura, dos mandarins dos orgulhosos da sua impotência. A bomba atômica, ao passo que para mim marcava o princípio do fim dos tempos, era para ele o sinal de um novo despertar. A matéria ia-se espiritualizando e o homem descobriria à sua volta e em si próprio forças até ali insuspeitadas.
O espírito burguês, para o qual a Terra é um local de descanso confortável de que é necessário extrair o máximo, ia ser sacudido pelo espírito novo, o espírito dos obreiros da Terra, para quem o mundo é uma máquina em marcha, um organismo em evolução, uma unidade a construir, uma Verdade a fazer desabrochar. A humanidade estava apenas no início da sua evolução. Ela recebia as primeiras informações a respeito da missão que lhe era destinada pela Inteligência do Universo. Mal começávamos a perceber o que é o amor do mundo.
Para meu pai, a aventura humana tinha uma direção. Ele julgava os acontecimentos conforme se situavam ou não nessa direção. A história tinha um sentido: ela evoluía para qualquer forma de ultra-humano, trazia em si a promessa de uma superconsciência. A sua filosofia cósmica não o separava do século.
No presente, as suas adesões eram progressistas. Eu irritava-me, sem perceber que ele punha uma espiritualidade infinitamente maior no seu progressismo do que os progressos que eu fazia na minha espiritualidade.
No entanto, eu sufocava no meu pensamento limitado. Diante daquele homem sentia¬me por vezes um pequeno intelectual árido e transido, e acontecia-me desejar pensar como ele, respirar tão amplamente como ele. Ao canto da sua banca de alfaiate, à
noite, eu levava a contradição ao extremo, provocava-o, desejando secretamente sentir-me perturbado e modificado. Mas, com a ajuda do cansaço, ele exaltava-se contra mim, contra o destino que lhe dera um grande pensamento sem lhe conceder os meios de o transferir para esse filho de sangue rebelde, e separávamo-nos encolerizados e indispostos.
Eu buscava de novo as minhas meditações e os meus livros desesperados. Ele inclinava-se sobre os tecidos e pegava novamente na agulha, sob a luz forte que lhe amarelecia os cabelos. Da minha cama ouvia-o durante muito tempo resfolgar, resmungar. Depois, de súbito, começava a assobiar entre dentes, suavemente os primeiros compassos do Hino à Alegria de Beethoven, para me dizer de longe que o amor encontra sempre os seus. Penso nele quase todas as noites, à hora das nossas antigas discussões. Ouço essa respiração, esse resmungar que terminava em canto, esse sublime vento desaparecido.
Há doze anos que morreu! E eu vou fazer quarenta. Se o tivesse compreendido em vida teria encaminhado mais habilmente a minha inteligência e o meu coração. Não parei de procurar. Agora, alio-me de novo a ele, mas após quantas pesquisas, muitas vezes inúteis, e perigosas divagações! Podia ter conciliado, muito mais cedo, o gosto pela vida interior e o amor pelo mundo em movimento. Podia ter construído mais cedo, e talvez com maior eficácia, quando as minhas forças estavam intactas, uma ponte entre a mística e o espírito moderno. Ter-me-ia sentido simultaneamente religioso e solidário com o grande impulso da história. Podia ter sentido mais cedo a fé, a caridade e a esperança. Este livro resume cinco anos de pesquisas, em todos os sectores do conhecimento, nas fronteiras da ciência e da tradição Lancei-me nesta empresa nitidamente superior às minhas possibilidades, porque já não podia recusar por mais tempo este mundo presente e futuro que, no entanto, é o meu.
Mas todo o excesso é esclarecedor. Podia ter descoberto mais cedo um meio de comunicação com a minha época. Pode ser que não tenha perdido totalmente o tempo ao ir até ao extremo da minha procura. Não acontece aos homens aquilo que eles merecem, mas sim o que se lhes assemelha. Procurei durante muito tempo, como o desejava o Rimbaud da minha adolescência, a Verdade numa alma e num corpo. Não o consegui. Na perseguição dessa Verdade perdi o contacto com as pequenas verdades que teriam feito de mim, não decerto o super-homem por que ansiava, mas um homem melhor e mais unificado do que sou.
No entanto, aprendi, a respeito do comportamento profundo do espírito, dos diversos estados possíveis da consciência, da memória e da intuição, coisas preciosas que não teria aprendido de outra forma e que me permitiriam, mais tarde, compreender o que há de grandioso, de essencialmente revolucionário na base do espírito moderno: a interrogação sobre a natureza do acontecimento e a necessidade imperiosa de uma espécie de transmutação da inteligência.
Quando saí do meu nicho de Yogi para lançar um golpe de vista sobre este mundo moderno que eu condenava sem o conhecer, aprendi repentinamente o maravilhoso. O meu estudo reacionário, tão cheio de orgulho e de ódio, fora útil na medida em que me impedira de aderir a este mundo pelo lado mau: o velho racionalismo do século XIX, o progressismo demagógico.
Impedira-me igualmente de aceitar este mundo como uma coisa natural e simplesmente porque era o meu, de o aceitar num estado de consciência sonolenta, como acontece à
maior parte das pessoas. Com os olhos remoçados por essa longa permanência fora do meu tempo, vi este mundo tão rico em fantástico real como o mundo da tradição era para mim em fantástico suposto. Melhor ainda: aquilo que aprendia sobre a época modificava, aprofundando-o, o meu conhecimento do espírito antigo. Vi as coisas antigas com um olhar novo, e os meus olhos estavam igualmente novos para ver as coisas novas.
Encontrei Jacques Bergier (mais adiante direi em que circunstâncias) na altura em que acabava de escrever uma obra a respeito do grupo de espíritos reunido à volta de Gurdjieff. Esse encontro, que não atribuo ao acaso, foi determinante. Acabava de consagrar dois anos a descrever uma escola esotérica e a minha própria aventura. Mas nesse momento principiava para mim outra aventura. Foi o que me pareceu necessário dizer ao despedir-me dos meus leitores. Terão de desculpar-me o fato de me citar a mim próprio, dado que não tenho a menor preocupação em chamar as atenções para a minha obra: são outros os meus objetivos. Inventei a fábula do macaco e da cabaça. Os indígenas, a fim de capturarem o animal com vida, amarram a um coqueiro uma cabaça contendo pistaches. O macaco precipita-se, estende a pata, pega nas pistaches, fecha a mão. E eis que não a pode retirar novamente. Aquilo que conquistou retêm-no prisioneiro. Ao sair da escola Gurdjieff escrevi:
É necessário apalpar, examinar os frutos-armadilhas, depois afastarmo-nos com rapidez. Satisfeita uma certa curiosidade, convém dirigir imediatamente a nossa atenção para o mundo em que estamos, recuperar a nossa liberdade e a nossa lucidez, retomar o caminho sobre a terra dos homens da qual fazemos parte.
O que importa é ver em que medida o movimento essencial do pensamento dito tradicional encontra o movimento do pensamento contemporâneo. A física, a biologia, as matemáticas, nos seus aspectos terminais, contém atualmente certos dados do esoterismo, reúnem certas visões do cosmos, relações da energia e da matéria que são visões ancestrais. As ciências de hoje, se as abordamos sem conformismo científico, mantêm um diálogo com os antigos mágicos, alquimistas, taumaturgos. Opera-se, sob
o nosso olhar uma revolução, e há de novo um casamento inesperado da razão, no auge das suas conquistas, com a intuição espiritual. Para os observadores verdadeiramente atentos, os problemas que se põem à inteligência contemporânea já não são problemas de progresso. Há alguns anos que a noção de progresso deixou de existir. São problemas de mudança de estado, problemas de transmutação. Neste sentido, os homens atentos às realidades da experiência interior vão na direção do futuro e dão solidamente a mão aos sábios de vanguarda que preparam o surgimento de um mundo sem nada de comum com o mundo de pesada transição no qual vivemos ainda por algumas horas.

Imagem: Beethoven. ojovemsabio.blogspot.com

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