Ou seja uma inteligência analógica, ou a inspiração mística, ou o estado de contemplação absoluta. Assim, a idéia de Eternidade, a idéia de Transfinito, a idéia de Deus, etc., são talvez modelos estabelecidos por nós e destinados, noutro domínio da nossa inteligência, num domínio habitualmente adormecido, a dar as respostas em vista das quais nós as elaboramos.
Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL
O que é preciso ver bem é que a idéia mais sublime é talvez o equivalente do desenho do bisão para o feiticeiro pré-histórico. Trata-se de uma maquete. Em seguida será necessário que as máquinas analógicas comecem a funcionar sobre esse modelo na zona secreta do cérebro. O feiticeiro passa, por transes, para a realidade do mundo bisão, descobre-lhe todos os aspectos de uma só vez e pode anunciar o lugar e a hora da próxima caçada. Isto é a magia no estado mais inferior. No estado superior, omodelo não é um desenho ou uma estatueta, nem sequer um símbolo. É uma idéia, é o produto mais perfeito da mais perfeita inteligência possível. Essa idéia só foi concebida em vista de outra etapa da investigação: a etapa analógica, segundo tempo de toda a investigação operacional.
O que nos parece é que a mais alta, a mais fervorosa atividade do espírito humano consiste em estabelecer modelos destinados a outra atividade do espírito, poucoconhecida e difícil de pôr em atividade. É neste sentido que se pode dizer: tudo é símbolo, tudo é signo, tudo é evocação de outra realidade. Isto abre-nos portas sobre o possível e infinito poder do homem. Isto não nos dá a chave de todas as coisas, contrariamente ao que crêem os simbologistas.
Da idéia de Trindade, da idéia do transfinido, à estatueta cravada de alfinetes do mago aldeão, passando pela cruz, a suástica, o vitral, a catedral, a Virgem Maria, os seres matemáticos, os números, etc., tudo é modelo, maquete de qualquer coisa que existe num universo diferente daquele onde essa maquete foi concebida. Mas as maquetes não são intercambiáveis: um modelo matemático de barragem fornecido ao computador eletrônico não é comparável a um modelo de foguetão supersônico. Nem tudo está em tudo. A espiral não está na cruz. A imagem do bisão não está na fotografia sobre a qualo médium se exercita, o ponto Ômega do P.e Teilhard não está no Inferno de Dante, o menir não está na catedral, os números de Cantor não estão nos números do Apocalipse. Se existem maquetes de tudo, nem todas as maquetes são como mesas gigognes, e não formam um todo desmontável que revele o segredo do Universo.
(Table gigognes mesa contendo uma série de mesas que entram umas nas outras) Se os modelos mais poderosos fornecidos à inteligência em estado de vigília superior são os modelos sem dimensão, quer dizer, as idéias, é preciso abandonar a esperança de encontrar a maquete do Universo na Grande Pirâmide ou sobre o pórtico de Notre-Dame. Se existe uma maquete do Universo inteiro, ela só poderia existir no cérebro humano, no cume extremo da mais sublime das inteligências. Mas não teria o Universo mais recursos do que o homem? Se o homem é um infinito, não seria o Universo o infinito mais qualquer coisa?
No entanto, descobrir que tudo é maquete, modelo, signo, símbolo, leva a descobrir uma chave. Não aquela que abre a porta do mistério insondável, e que aliás não existe, ou está ainda nas mãos de Deus. A chave, não de uma certeza, mas de uma atitude. Trata-se de fazer funcionar a inteligência diferente à qual essas maquetes são propostas. Trata-se portanto de passar do estado de vigília vulgar para o estado de vigília superior.
O estado desperto. Nem tudo está em tudo. Mas a vigília é tudo.
A NOÇÃO DO ESTADO DE VIGÍLIA
À maneira dos teólogos, dos sábios, dos magos e das crianças. - Cumprimentos a um especialista em suscitar obstáculos. - O conflito espiritualismo-materialismo, ou uma história de alergia. - A lenda do chá. - E se se tratasse de uma faculdade natural? - O pensamento como forma de caminhar e de sobrevoar. - Um suplemento aos direitos do homem. - Divagações sobre o homem desperto. - Nós, honestos bárbaros. . .
Consagrei um grande volume à descrição de uma sociedade de intelectuais que procurava alcançar, sob a orientação do taumaturgo Gurdjieff, o estado de vigília. Continuo a achar que é uma das pesquisas mais importantes. Gurdjieff dizia que o espírito moderno, nascido numa estrumeira, regressaria à estrumeira, e aconselhava odesprezo pelo século. É que de fato o espírito moderno nasceu do esquecimento, da ignorância da necessidade de uma tal procura. Mas Gurdjieff, homem de idade, confundia o espírito moderno com o cartesianismo crispado do século XIX. Para o verdadeiro espírito moderno, o cartesianismo já não é panacéia, e a própria natureza da inteligência deve ser reconsiderada.
De forma que, pelo contrário, a extrema modernidade pode levar os homens a meditar com vantagem sobre a possível existência de outro estado de consciência: de um estado de consciência desperta. Neste sentido, os matemáticos e os físicos de hoje dão as mãos aos místicos de ontem. O desprezo de Gurdjieff, como o de René Guénon, outro defensor, mas puramente teórico, do estado de vigília, não convém à época. E eu suponho que se Gurdjieff tivesse sido completamente esclarecido, não se teria enganado na época. Para uma inteligência que sente absoluta necessidade de uma transmutação, o nosso tempo não deve suscitar o desprezo, mas sim o amor.
Até agora foi em termos religiosos, esotéricos ou poéticos que o estado de vigília foi evocado. A incontestável vantagem de Gurdjieff foi mostrar que podia haver uma psicologia e uma fisiologia desse estado. Mas empregava de propósito uma linguagem obscura e encerrava os seus discípulos num verdadeiro claustro intelectual. Vamos tentar falar como homens da segunda metade do século XX, com os processos do exterior. A respeito de tal assunto faremos, evidentemente, aos olhos dos especialistas, figura de bárbaros. E a verdade é que nós somos um pouco bárbaros! Sentimos, no mundo de hoje, que se prepara uma alma nova para uma nova idade da Terra. A nossa forma de abordar a provável existência de um estado de vigília não será nem completamente religiosa, nem completamente esotérica, ou poética, nem completamente científica. Será um pouco de tudo isto simultaneamente, e trairá um pouco, aparentemente, todas as disciplinas. É isto o Renascimento: uma panela de água a ferver, onde mergulham, misturados, os métodos dos teólogos, dos sábios, dos mágicos e das crianças.
Numa manhã de Agosto de 1957 houve grande afluência de jornalistas à partida de umnavio que saía de Londres a caminho das Índias. Um senhor e uma senhora, de cerca de cinqüenta anos e de aspecto insignificante, tinham embarcado. Era o grande biólogo
J. B. S. Haldane, que, acompanhado de sua mulher, deixava para sempre a Inglaterra.
Estou farto deste país, e de uma quantidade de coisas deste país, dizia ele com suavidade. Especialmente do americanismo que nos invade. Vou procurar idéias novas e trabalhar em liberdade num país novo.
Assim começava uma nova etapa na carreira de um dos homens mais extraordinários da época. J. B. S. Haldane defendera Madrid, de espingarda na mão, contra os franquistas. Aderira ao partido comunista inglês, mas rasgara o seu cartão após o casoLysenko. E, agora, ia procurar a verdade nas Índias. Durante trinta anos, o seu humor negro fora inquietante. Respondera ao questionário de um jornal a respeito da decapitação do rei Carlos I de Inglaterra, que reacendera grandes controvérsias: Se Carlos I fosse um gerânio, ambas as partes teriam sobrevivido.
Depois de pronunciar um violento discurso no Clube dos Ateístas, recebera uma carta de um católico inglês que lhe assegurava que Sua Santidade o Papa não estava de acordo. Adaptando imediatamente essa respeitosa fórmula, escrevera ao ministro da Guerra: Vossa Ferocidade, ao ministro do Ar: Vossa Velocidade e ao presidente da liga racionalista: Vossa Impiedade. Nessa manhã de Agosto, os seus camaradas da esquerda também não deviam estar descontentes com a sua partida. Pois, embora defendesse a biologia marxista, Haldane nem por isso deixava de reclamar o alargamento do campo de prospecção da ciência, o direito à observação dos fenômenos não de acordo com o espírito racional. Respondia-lhes, com uma tranqüila insolência: Estudo o que é realmente esquisito em químico-física, mas não desprezo nada nos outros domínios.
Insistira há muito tempo para que a ciência estudasse sistematicamente a noção de vigília mística. Desde 1930, nos seus livros A Desigualdade do Homem e Os Mundos Possíveis, a despeito da sua posição de sábio oficial, declarara que o Universo era talvez mais estranho do que se supunha, e que os testemunhos poéticos ou religiosos sobre um estado de consciência superior ao estado de vigília vulgar deviam ser objeto de uma investigação científica.
Tal homem devia fatalmente embarcar um dia para a Índia, e não seria de admirar que os seus trabalhos futuros versassem sobre assuntos como Eletroencefalografia e Misticismo ou Quarto estado da consciência e metabolismo do gás carbônico. São coisas possíveis da parte de um homem cuja obra inclui já um Estudo das aplicações do espaço de dezoito dimensões aos problemas essenciais da genética.
A nossa psicologia oficial admite dois estados de consciência: sono e vigília. Mas, das origens da humanidade aos nossos dias, abundam os testemunhos sobre a existência de estados de consciência superiores ao estado de vigília. Haldane foi possivelmente o primeiro sábio moderno a examinar objetivamente esta noção de superconsciência.
Estava dentro da lógica da nossa época de transição que esse homem aparecesse, tanto aos seus inimigos espiritualistas como aos seus amigos materialistas, como um especialista em suscitar obstáculos.
Da mesma forma que Haldane, devemos manter-nos completamente estranhos ao velho debate entre espiritualistas e materialistas. Esta é a atitude verdadeiramente moderna. Não colocarmo-nos acima do debate. Não existe acima nem abaixo: não tem volume nem sentido.
Os espiritualistas acreditam na possibilidade de um estado superior de consciência. Vêem nisso um atributo da alma imortal. Os materialistas protestam mal se lhes oferece ocasião, e agitam o nome de Descartes. Nem uns nem outros vão analisar de perto, com espírito isento de preconceitos. Ora deve haver outra forma de considerar o problema. Uma forma realista, no sentido que nós damos ao termo: um realismo integral, quer dizer, que tem em conta os aspectos fantásticos da realidade. Aliás poderia dar-se o caso de que este velho debate apenas aparentemente tivesse qualquer parcela de filosófico. Pode ser que não seja mais do que uma disputa entre pessoas que, funcionalmente, reagem de maneira diferente em relação a um fenômeno natural. Qualquer coisa como uma discussão caseira entre o senhor que gosta do vento e a senhora que o detesta.
O embate de dois tipos humanos: no interior, nada susceptível de provocar luz. Se assim fosse realmente, quanto tempo perdido em controvérsias abstratas, e como teríamos razão em nos afastar do debate para abordar, com espírito selvagem, a questão do estado de vigília!
Vejamos a hipótese:
A passagem do sono para a vigília produz um certo número de modificações no organismo. Por exemplo, a tensão arterial muda, o influxo nervoso modifica-se. Se existe, como pensamos, digamos um estado de supervigília, um estado de consciência superior, a passagem também deve ser acompanhada de diversas transformações.
Ora sabemos todos que, para certos homens, o fato de emergir do sono é doloroso ou pelo menos violentamente desagradável. A medicina moderna apercebe-se do fenômeno e distingue dois tipos humanos a partir da reação ao despertar. O que é o estado de superconsciência, de consciência realmente desperta? Os homens que fizeram a experiência descrevem-no, no regresso, com dificuldade. Em parte, a linguagem não chega para o descrever. Sabemos que pode ser atingido voluntariamente. Todos os exercícios dos místicos convergem para esse objetivo. Sabemos igualmente que é possível – como o diz Vivekananda - que um homem que desconhece essa ciência (a ciência dos exercícios místicos) atinja por acaso esse estado. A literatura poética do Mundo inteiro está cheia de testemunhos a respeito de bruscas inspirações. E quantos homens, que não são nem poetas nem místicos, se sentiram, por uma fração de segundo, prestes a atingir esse estado?
Comparemos esse estado singular, excepcional, a outro estado excepcional. Os médicos e os psicólogos começam a estudar a pedido do exército, o comportamento do ser humano na queda que anula a gravidade terrestre. Para além de certo grau de aceleração a gravidade é abolida. O passageiro do avião experimental lançado num vôo picado flutua durante alguns segundos. Verifica-se que, para certos passageiros, essa queda é acompanhada de uma extrema sensação de felicidade. Para outros, de extrema angústia, de horror.
Pois bem, pode ser que a passagem - ou a tentativa de passagem - entre o estado de vigília vulgar e o estado de consciência superior (iluminativa, mágica) provoque certas modificações subtis no organismo, desagradáveis para certos homens e agradáveis para outros. O estudo de uma fisiologia ligada aos estados de consciência é ainda embrionário. Começa agora a fazer alguns progressos com a hibernação. A psicologia do estado superior de consciência não chamou ainda a atenção dos sábios, salvo certas exceções.
Se refletirmos na nossa hipótese, compreender-se-á a existência de um tipo humano racionalista, positivista, agressivo por autodefesa desde que se trate, em literatura, em filosofia ou em ciência, de sair do domínio onde se exerce a consciência no seu estado vulgar. E compreende-se a existência do tipo espiritualista, para quem qualquer alusão à possibilidade de exceder a razão evoca um paraíso perdido. Encontrar-se-ia, na base de uma imensa discussão escolástica, o humilde: gosto, ou não gosto. Mas o que é que, em nós, gosta ou não gosta? Em verdade, nunca é Eu: isto gosta, ou aquilo não gosta, em mim, e nada mais. Afastemo-nos portanto o mais possível do problema espiritualismo-materialismo, que talvez não seja mais que um verdadeiro problema de alergias. O essencial é saber se o homem possui, nas suas regiões inexploradas, instrumentos superiores, enormes amplificadores da sua inteligência, e equipamento completo para conquistar e compreender o Universo, para se conquistar e se compreender a si próprio, para assumir a totalidade do seu destino.
Bodhidarma, fundador do budismo Zen, quando um dia estava em meditação, adormeceu (quer dizer que se deixou cair, por inadvertência, no estado de consciência habitual à maior parte dos homens). Essa falta pareceu-lhe tão horrível que cortou as pálpebras. Estas, segundo diz a lenda, caíram no solo, dando imediatamente lugar ao nascimento do primeiro pé de chá. O chá, que protege contra o sono, é a flor que simboliza o desejo dos sábios de se manter em vigília, e é por isso que se diz o gosto do chá e o gosto do Zen são semelhantes. Esta noção do estado de vigília parece tão velha como a humanidade. É a chave dos mais antigos textos religiosos, e é possível que o homem pré-histórico já tivesse procurado atingir esse terceiro estado. O método de datar com o radiocarbono permitiu constatar que os índios do sudoeste do México, há mais de dez mil anos, absorviam certos cogumelos para provocar a hiperlucidez. Trata-se sempre de mandar abrir o terceiro olho, de ultrapassar o estado de consciência vulgar onde tudo é apenas ilusão, prolongamento dos sonhos do profundo sono. Desperta, dorminhoco, desperta! Dos Evangelhos aos contos de fadas é sempre a mesma admoestação.
Os homens procuraram esse estado de vigília em toda a espécie de ritos, pelas danças, os cantos, pela maceração, o jejum, a tortura física, as drogas diversas, etc. Quando o homem moderno se tiver apercebido da importância do que está em jogo - o que não tardará -, outros meios serão sem dúvida encontrados. O sábio americano J. B. Olds prevê uma estimulação eletrônica do cérebro. O astrônomo inglês Fred Hoyle propõe a observação de imagens luminosas sobre um écran de televisão. Já H. G. Wells, no seu belo livro Na Época do Cometa, imaginava que devido à colisão com um cometa a atmosfera da Terra ficaria cheia de um gás que provocaria a hiperlucidez. Os homens então transpunham finalmente a fronteira que separa a verdade da ilusão. Despertavam para as verdadeiras realidades. De chofre, todos os problemas, práticos, morais e espirituais, se achavam resolvidos.
Imagem: Bodhiharma - fundador da filosofia Chan budismo (ou Zen budismo em japonês)
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