Fábio Della Paschoa Rodrigues
Eu não sou eu nem o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá Carneiro
Guy de Maupassant e Mário de Sá
Carneiro produziram obras que se caracterizam pelo predomínio do inverossímil
sobre o real. Há nelas muitos elementos em comum: no enredo, nos personagens,
nas situações, nas causas
– e nos próprios autores.
As novelas mostram a complicada relação
eu-outro (feita de oposição e identificação), a luta com o (seu) duplo, com o
enrustido (a sexualidade) e com a sociedade. Na verdade, essa é a luta interior
dos próprios autores.
O narrador d’ O Horla é um senhor francês na casa dos 40
anos, solteiro, que vive às margens do Sena, em Biessard, com “fortuna
suficiente para viver com um certo luxo”.
Lúcio é um jovem escritor português que
mora em Paris, relapso estudante de Direito, que freqüenta ambientes
requintados de artistas da moda, onde conhece Ricardo de Loureiro, poeta e
também português.
Os personagens-narradores procuram sempre
demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os
(simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”.
Eles intensificam o caráter documental de
suas obras: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora
como um diário íntimo.
O estilo da narrativa tem por objetivo
deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?).
Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa
confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro, mas parece não ter o
mesmo efeito no primeiro Horla (conto). Daí, a mudança para um diário íntimo da
segunda versão, que, além disso, aumentou o número de páginas (novela) e deixou
a desordem subjetiva refletir-se numa desordem da escrita, em contraponto com a
“objetividade” da primeira versão.
Não estou escrevendo uma novela. Apenas
desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando
em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha
confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a
menos lúcida.
(...) E são apenas fatos que relatarei.
Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o
experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)
Não importa que me acreditem, mas só digo
a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.
(A Confissão de Lúcio - Prólogo)
Durante muito tempo julgou-me louco. Hoje
duvida. Dentro de algum tempo, todos saberão que tenho um espírito tão são,
lúcido e perspicaz quanto o dos senhores, infelizmente para mim, para os
senhores e para toda a humanidade.
Mas desejo começar pelos próprios fatos,
pelos simples fatos.
(O Horla - 1ª versão)
Ah! Quem compreenderá a minha abominável
angústia? Quem compreenderá a emoção de um homem, são de espírito, bem
desperto, cheio de razão (...)?
(O Horla - 2ª versão)
Os personagens se movem num ambiente
carregado de excentricidade e vivem uma história extraordinária.
A “casa” é o lugar onde acontecem as
experiências fantásticas, onde ocorrem as “situações de perigo”. E a viagem
(fuga) é o meio pelo qual acredita-se voltar à realidade e à paz.
Há um ciclo casa-viagem-casa constante nas
obras.
N’O Horla, são muitas as
experiências fantásticas “dentro de casa”, que levam o personagem-narrador a
fazer as constantes viagens.
2 de junho - (...)
Acometeu-me de súbito um arrepio, não um
arrepio de frio, mas um estranho arrepio de angústia.
Apressei o passo, inquieto de estar
sozinho naquele bosque, amedrontado sem razão, estupidamente, pela solidão
profunda. De súbito me pareceu que estava sendo seguido, que andavam nos meus
calcanhares, bem junto de mim, quase a tocar-me.
5 de julho. - (...) Como o faço agora cada
noite, eu tinha fechado a minha porta a chave; tendo sede, bebi meio copo
d’água, e notei por acaso que a minha jarra estava cheia até o gargalo de
cristal.
Deitei-me em seguida e caí num dos meus
terríveis sonos (...)
Tendo enfim recuperado a razão, senti sede
de novo; (...) Ergui-a [a jarra], inclinado-a sobre o meu
copo: nada escorreu. - Estava vazia! Tinham então bebido aquela água? Quem? Eu?
(...)
6 de agosto. - (...) vi, distintamente,
bem perto de mim, dobrar-se o hastil de
uma das rosas, como se mão invisível o torcesse, e depois o vi quebrar-se, como se a mão o tivesse
colhido! E a flor ergueu-se no ar (...)
17 de agosto. - (...) Nada vi a princípio,
depois, de repente, pareceu-me que uma página do livro (...) acabara de
virar-se sozinha. (...) Uns quatro minutos depois, eu vi sim, eu vi com os meus
próprios olhos, uma outra página erguer-se e pousar sobre a precedente, como se
um dedo a tivesse folheado.(...)
( O Horla - 2ª versão)
É em Lisboa, terra natal de Lúcio, que
este conhece Marta, esposa do amigo Ricardo Loureiro, e que ela se entrega
fogosamente a Lúcio e cria o mistério aos olhos do amante: Lúcio nada sabe
sobre ela, nem sobre seu passado ou presente e nem mesmo se ela e Ricardo são
de fato casados. Marta é envolta numa aura de mistério. Lúcio sente, às vezes,
uma inexplicável repulsa diante do lindo corpo de Marta, que se transforma em
nojo, ao descobrir que ela também era amante de outros amigos de Ricardo, e que
este sabia de tudo o que se passava. Em fuga desesperada, Lúcio parte para
Paris.
Porém, nas viagens, inconscientemente, os
personagens buscam novas experiências que acabam por somar-se às de casa e
comprometer ainda mais a lucidez dos fatos.
O narrador d’O Horla viaja para o monte Saint-Michel onde
visita uma abadia gótica (tipicamente sombria), ouvindo lendas fantásticas
de um monge, e para Paris, onde tem contato com estranhas experiências sobre
hipnotismo.
Lúcio vai a uma festa em Paris, promovida
por uma milionária norte-americana, lésbica e interessada na voluptuosidade como
arte. No suntuoso palacete dessa norte-americana, assiste a um estranho
espetáculo.
3 de junho. - A noite foi horrível. Vou
ausentar-me durante algumas semanas. Uma pequena viagem, sem dúvida, me deixará
restabelecido.
2 de julho. - Regresso. Estou curado.
(...) Visitei o monte Saint-Michel (...)
Tendo galgado a rua estreita e rápida,
penetrei na mais admirável morada gótica construída para Deus (...)
E o monge me contou histórias (...),
lendas e mais lendas.
16 de julho. - Vi ontem coisas que bastante
me preocuparam.
(...)
Ela sentou-se numa poltrona e ele começou
a olhá-la fixamente, fascinando-a.
(...)
Ao cabo de quinze minutos ela dormia.
_ Coloque-se atrás dela, disse o médico.
E eu me sentei atrás dela. Ele colocou-lhe
entre as mãos um cartão de
visita, dizendo-lhe: “Isto aqui é um espelho; que vê nele?”
Ela respondeu:
_ Eu vejo o meu primo.
(O Horla - 2ª versão)
_ Depois da ceia, é o espetáculo - o meu
Triunfo! Quis condensar nele as minhas idéias sobre a voluptuosidade-arte.
Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne
espiritualizada em ouro!
(...)
E começou dançando...
Envolvia-a uma túnica branca, listada de
amarelo. Cabelos soltos, loucamente.
(...)
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando,
até que (...) soçobrou a seus pés...
(...)
No palco surgiram três dançarinas.
(...)
Pouco a pouco os seus movimentos se
tornavam cada vez mais rápidos até que por último, num espasmo, as suas bocas
se uniram e, rasgados todos os véus - seios, ventres e sexos descobertos - os
corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez
luminosa....
(cap. I - A confissão de Lúcio)
O espaço, nas obras, constituem, mais que
cenários, pretextos que não se diferenciam e não se especificam na construção
do verdadeiro espaço dos personagens: o espaço que aproxima (confunde)
realidade e sonho. Os momentos vividos nesses espaços têm mais densidade
psicológica do que concretude objetiva, estão mais ligados ao imaginário que à
realidade.
Os personagens assumem duas posições que
nos mostram como que um desdobramento de
personalidade: de um lado o narrador “verossímil”, que afirma estar lúcido e
relatar tão somente os simples fatos; de outro lado, o narrador “inverossímil”,
que aceita o jogo dos acontecimentos e inverte fantasia e realidade.
Tentam inferir fidelidade aos fatos que
relatam, mas ao mesmo tempo demonstram saber a incoerência, a falta de lucidez
do que contarão. Esse movimento de reiteração da verossimilhança da história
pressupondo a sua inverossimilhança será constante nas novelas, e será usado
como defesa para constatar a lucidez dos narradores.
Os narradores tentam explicar os fatos à
luz da razão, usando argumentos racionais e científicos em seu favor, tentando
induzir à lucidez. Porém, vão se mostrando cada vez mais perturbados, menos
coerentes.
O constante questionamento do narrador
sobre a lucidez dos fatos tem a intenção de produzir no leitor a constante
dúvida das narrações fantásticas (real ou imaginário?). As obras mantêm-se na
hesitação entre o real e o imaginário até o desfecho, mas sempre tentando
convencer o leitor da realidade dos fatos.
A perturbação dos fatos reflete-se na
escrita, cheias de interrogações, exclamações, repetições e reticências.
16 de maio. - Estou doente, decididamente!
(...)
18 de maio. - Acabo de consultar o meu
médico (...)
5 de julho. - Terei perdido a razão? O que
se passou na última noite é de tal modo estranho, que a minha cabeça fica
perdida quando recordo!
(...)
6 de julho. - Enlouqueço. Beberam outra
vez toda a minha água esta noite: ou antes, eu a bebi!
Mas fui eu? Fui eu? Quem? Quem seria? Oh!
meu Deus! Eu enlouqueço! Quem me salvará?
(...)
6 de agosto. - Desta vez eu não estou
louco. Eu vi... eu vi... eu vi!..
(...) Então fui tomado de uma cólera
furiosa contra mim mesmo; pois não é lícito a um homem sensato e sério sofrer
semelhantes alucinações.
Mas seria mesmo alucinação?
(...)
7 de agosto. - (...)
Indago comigo mesmo se não estarei
louco.(...)
Sem dúvida eu me julgaria louco, absolutamente
louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse perfeitamente o meu
estado, se não o sondasse, analisando-o com uma completa lucidez. Quando muito,
eu seria, afinal, um alucinado raciocinante.
(...)
16 de agosto. - (...) Mandei parar na
Biblioteca e tomei emprestado o grande tratado de Hermann Herestauss sobre os
habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
(...)
19 de agosto. - Já sei... já sei.. já sei
tudo! Acabo de ler isto na Revue du Monde Scientifique (...)
(O Horla - 2ª versão)
Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão
começou no meu espírito... Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite
achei-me perguntando a mim próprio:
_ Mas no fim de contas quem é essa
mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito.
Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Mistério...
(A confissão de Lúcio - cap. III)
Depois, olhando melhor nem era só do seu
passado que eu ignorava tudo - também duvidava do seu presente (...). Sim, em
verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim (...). Pois bem,
pela minha parte, quando a não tinha a meu lado, coisa alguma que restava que,
materialmente, me pudesse provar a sua existência.
(A confissão de Lúcio - cap. V)
O tema das duas novelas nos coloca a
questão do eu versus o outro, ou do eu projetado no outro ou, ainda, da fusão do eu e do outro.
Nelas há a criação de um novo ser
imaginário (o outro) que
dá vazão aos sentimentos sufocados (à loucura?).
N’A confissão de Lúcio há a criação de Marta, obra de
voluptuosidade-arte, fruto da imaginação de Lúcio ou Ricardo ou de ambos.
N’O Horla há a criação de um ser invisível, que
se alimenta basicamente de água e que não se sabe ser real ou fruto da
imaginação do narrador.
Ora, esse outro são os sentimentos sufocados nos
personagens, que cresceram de tal modo que explodiram em um novo ser. Estes
sentimentos são frutos da homossexualidade enrustida, que é a chave das
novelas.
Em toda homossexualidade há o desejo e o
medo pelo outro. Quando o
medo é maior, a sexualidade se fecha e pode permanecer enrustida até a completa
maturidade. Em nossa sociedade, a homossexualidade é perversão, doença e/ou
vulgaridade, o que impede a realização do desejo, que para o homossexual nada
tem de vulgar.
Porém, o desejo sempre acaba por vir à
tona e há dois caminhos a seguir neste ponto: a aceitação da homossexualidade
ou a negação completa dos sentimentos, que pode levar à loucura. Em muitos
casos, a aceitação da homossexualidade é parcial e convertida numa bissexualidade.
Este parece ser o caso de Lúcio. A solução
encontrada foi a criação de Marta, um novo ser do sexo oposto, que funcionava
como intermediário entre os verdadeiros amantes, sem o ônus daquilo que é
socialmente interdito: o homossexualismo.
O narrador d’O Horla não se aceita e permanece numa linha tênue
entre a realidade e a loucura. Na verdade, para ele, os sentimentos que vêm à
tona são loucura.
A sugestão de homossexualismo é explícita em Sá Carneiro (que era
homossexual), conforme nos mostram os trechos abaixo, em que Marta pede um beijo
a Lúcio, na presença de Ricardo.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como
Ricardo insistisse, curvei-me trêmulo de medo, estendi os lábios mal os
pousando na pele...
E Marta:
_ Que beijo tão desengraçado! Parece
impossível que ainda não saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo,
ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para
mim... tomou-me o rosto... beijou-me...
O beijo de Ricardo fora igual, exatamente
igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante.
Eu sentira-o da mesma maneira.
(A confissão de Lúcio - cap. V)
Começou a parecer-me, não sei porquê, que
nunca a possuíra inteiramente, mesmo que não era possível possuir aquele corpo
por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse do meu sexo!
E ao penetrar-me esta idéia alucinadora,
eu lembrava-me sempre que o beijo
de Ricardo, esse beijo masculino, me soubera às mordeduras de Marta, tivera a
mesma cor, a mesma perturbação...
(A confissão de Lúcio - cap. VI)
N’O Horla a sugestão é muito sutil. Passa
despercebida até. Têm-se de prestar atenção aos pormenores do relato, na
conotação que se dá a alguns fatos relatados.
Características relevantes são extraídas
de passagens, à primeira vista, menores. O narrador é um senhor (conforme a
primeira versão, com 42 anos de idade), solteiro, com certa fortuna e uma
grande casa com criadagem. Ele não faz menção, em momento algum da novela, a
mulheres ou a sexo. Ora, não é comum um homem (heterossexual) nessa posição
omitir a figura feminina e, muito menos, o sexo de sua vida - a menos que isto
não esteja presente nela.
O narrador se refere ao novo ser no
masculino, não como uma generalização, mas adotando um sexo para ele. As
descrições dos “ataques” noturnos do ser têm certa conotação erótica.
Eu o sinto e o vejo... e sinto também que
alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe para a minha cama,
ajoelha-se sobre o meu peito, me toma o pescoço entre as suas mãos e aperta...
aperta...
(...)
8 de agosto. - Passei ontem uma terrível
noite. Ele não se manifesta mais, mas eu o sinto perto de mim, espiando-me,
olhando-me, penetrando-me, dominando-me (...)
Dormi, no entanto.
(O Horla - 2ª versão)
Acrescente-se o curioso título da novela,
em francês Le Horla. O
artigo do nome é masculino, porém a terminação é feminina. Há também a hipótese
do nome derivar da fusão do nome da mãe de Maupassant com o nome de seu melhor amigo. Clássicos da
homossexualidade, psicologicamente falando: a mãe e um amor travestido de
amizade.
Os personagens chegam a um limite da
loucura, quando percebem que o outro,
na verdade, está dentro deles mesmos.
Quando se dão conta da realidade de fato e abandonam a realidade artística (no caso de Lúcio) e a realidade inverossímil (no caso do narrador d’O Horla),
o confronto com o eu-outro é tão violento que o desfecho de ambas
as novelas é trágico: o assassínio (ou suicídio).
O medo prevalece em ambos os personagens e
faz com que reneguem seus sentimentos e sua própria vida.
14 de agosto. - Estou perdido! Alguém
possui a minha alma e a governa! alguém ordena todos os meus atos, todos os
meus gestos, todos os meus pensamentos. Eu nada mais sou em mim, nada mais sou
que um espectador, escravizado, e aterrorizado de todas as coisas que eu faço.
19 de agosto. - (...)
Mas que tenho? É ele, o Horla, que me
habita, que me faz pensar estas loucuras! Ele está em mim, ele se torna a minha
alma; eu o matarei!
Eu o matarei.
(...)
10 de setembro. - (...) Tudo acabado.
Enfim... Mas terá ele morrido?
(...)
Não... não... sem dúvida nenhuma, sem dúvida
nenhuma... ele não está morto... Então... então.. vai ser preciso agora que eu
me mate!...
(O Horla - 2ª versão)
Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta
brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma
janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se
voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco
e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à
queima roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não
arredara pé do limiar...
E então foi o Mistério... Mistério o
fantástico de minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia
estiraçado junto da janela não era Marta - não! -, era meu amigo, era Ricardo..
E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em
silêncio, como se extingue uma chama...
(A confissão de Lúcio - cap. VII)
No momento em que a tensão se torna
insuportável para a consciência, a própria vida do outro é destruída. Mas o eu e ooutro são um só e, portanto, o eu também tem de ser destruído.
A epígrafe de Fernando Pessoa, utilizada
por Sá Carneiro em seu romance, reflete um pouco a tensão das novelas:
(...) assim éramos nós obscuramente dois,
nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro
viveria (...)
Textos:
O Horla (1ª e 2ª versão), Guy de
Maupassant (1886)
A confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro
(1913)
As novelas mostram a complicada relação
eu-outro (feita de oposição e identificação), a luta com o (seu) duplo, com o
enrustido (a sexualidade) e com a sociedade. Na verdade, essa é a luta interior
dos próprios autores.
O narrador d’ O Horla é um senhor francês na casa dos 40
anos, solteiro, que vive às margens do Sena, em Biessard, com “fortuna
suficiente para viver com um certo luxo”.
Lúcio é um jovem escritor português que
mora em Paris, relapso estudante de Direito, que freqüenta ambientes
requintados de artistas da moda, onde conhece Ricardo de Loureiro, poeta e
também português.
Os personagens-narradores procuram sempre
demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os
(simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”.
Eles intensificam o caráter documental de
suas obras: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora
como um diário íntimo.
O estilo da narrativa tem por objetivo
deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?).
Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa
confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro, mas parece não ter o
mesmo efeito no primeiro Horla (conto). Daí, a mudança para um diário íntimo da
segunda versão, que, além disso, aumentou o número de páginas (novela) e deixou
a desordem subjetiva refletir-se numa desordem da escrita, em contraponto com a
“objetividade” da primeira versão.
Não estou escrevendo uma novela. Apenas
desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando
em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha
confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a
menos lúcida.
(...) E são apenas fatos que relatarei.
Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o
experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)
Não importa que me acreditem, mas só digo
a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.
(A Confissão de Lúcio - Prólogo)
Durante muito tempo julgou-me louco. Hoje
duvida. Dentro de algum tempo, todos saberão que tenho um espírito tão são,
lúcido e perspicaz quanto o dos senhores, infelizmente para mim, para os
senhores e para toda a humanidade.
Mas desejo começar pelos próprios fatos,
pelos simples fatos.
(O Horla - 1ª versão)
Ah! Quem compreenderá a minha abominável
angústia? Quem compreenderá a emoção de um homem, são de espírito, bem
desperto, cheio de razão (...)?
(O Horla - 2ª versão)
Os personagens se movem num ambiente
carregado de excentricidade e vivem uma história extraordinária.
A “casa” é o lugar onde acontecem as experiências
fantásticas, onde ocorrem as “situações de perigo”. E a viagem (fuga) é o meio
pelo qual acredita-se voltar à realidade e à paz.
Há um ciclo casa-viagem-casa constante nas
obras.
N’O Horla, são muitas as
experiências fantásticas “dentro de casa”, que levam o personagem-narrador a
fazer as constantes viagens.
2 de junho - (...)
Acometeu-me de súbito um arrepio, não um
arrepio de frio, mas um estranho arrepio de angústia.
Apressei o passo, inquieto de estar
sozinho naquele bosque, amedrontado sem razão, estupidamente, pela solidão
profunda. De súbito me pareceu que estava sendo seguido, que andavam nos meus
calcanhares, bem junto de mim, quase a tocar-me.
5 de julho. - (...) Como o faço agora cada
noite, eu tinha fechado a minha porta a chave; tendo sede, bebi meio copo
d’água, e notei por acaso que a minha jarra estava cheia até o gargalo de
cristal.
Deitei-me em seguida e caí num dos meus
terríveis sonos (...)
Tendo enfim recuperado a razão, senti sede
de novo; (...) Ergui-a [a jarra], inclinado-a sobre o meu
copo: nada escorreu. - Estava vazia! Tinham então bebido aquela água? Quem? Eu?
(...)
6 de agosto. - (...) vi, distintamente,
bem perto de mim, dobrar-se o hastil de
uma das rosas, como se mão invisível o torcesse, e depois o vi quebrar-se, como se a mão o tivesse
colhido! E a flor ergueu-se no ar (...)
17 de agosto. - (...) Nada vi a princípio,
depois, de repente, pareceu-me que uma página do livro (...) acabara de
virar-se sozinha. (...) Uns quatro minutos depois, eu vi sim, eu vi com os meus
próprios olhos, uma outra página erguer-se e pousar sobre a precedente, como se
um dedo a tivesse folheado.(...)
( O Horla - 2ª versão)
É em Lisboa, terra natal de Lúcio, que
este conhece Marta, esposa do amigo Ricardo Loureiro, e que ela se entrega
fogosamente a Lúcio e cria o mistério aos olhos do amante: Lúcio nada sabe
sobre ela, nem sobre seu passado ou presente e nem mesmo se ela e Ricardo são
de fato casados. Marta é envolta numa aura de mistério. Lúcio sente, às vezes,
uma inexplicável repulsa diante do lindo corpo de Marta, que se transforma em
nojo, ao descobrir que ela também era amante de outros amigos de Ricardo, e que
este sabia de tudo o que se passava. Em fuga desesperada, Lúcio parte para
Paris.
Porém, nas viagens, inconscientemente, os
personagens buscam novas experiências que acabam por somar-se às de casa e
comprometer ainda mais a lucidez dos fatos.
O narrador d’O Horla viaja para o monte Saint-Michel onde
visita uma abadia gótica (tipicamente sombria), ouvindo lendas fantásticas
de um monge, e para Paris, onde tem contato com estranhas experiências sobre
hipnotismo.
Lúcio vai a uma festa em Paris, promovida
por uma milionária norte-americana, lésbica e interessada na voluptuosidade
como arte. No suntuoso palacete dessa norte-americana, assiste a um estranho
espetáculo.
3 de junho. - A noite foi horrível. Vou
ausentar-me durante algumas semanas. Uma pequena viagem, sem dúvida, me deixará
restabelecido.
2 de julho. - Regresso. Estou curado.
(...) Visitei o monte Saint-Michel (...)
Tendo galgado a rua estreita e rápida,
penetrei na mais admirável morada gótica construída para Deus (...)
E o monge me contou histórias (...),
lendas e mais lendas.
16 de julho. - Vi ontem coisas que
bastante me preocuparam.
(...)
Ela sentou-se numa poltrona e ele começou
a olhá-la fixamente, fascinando-a.
(...)
Ao cabo de quinze minutos ela dormia.
_ Coloque-se atrás dela, disse o médico.
E eu me sentei atrás dela. Ele colocou-lhe
entre as mãos um cartão de
visita, dizendo-lhe: “Isto aqui é um espelho; que vê nele?”
Ela respondeu:
_ Eu vejo o meu primo.
(O Horla - 2ª versão)
_ Depois da ceia, é o espetáculo - o meu
Triunfo! Quis condensar nele as minhas idéias sobre a voluptuosidade-arte.
Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne
espiritualizada em ouro!
(...)
E começou dançando...
Envolvia-a uma túnica branca, listada de
amarelo. Cabelos soltos, loucamente.
(...)
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando,
até que (...) soçobrou a seus pés...
(...)
No palco surgiram três dançarinas.
(...)
Pouco a pouco os seus movimentos se
tornavam cada vez mais rápidos até que por último, num espasmo, as suas bocas
se uniram e, rasgados todos os véus - seios, ventres e sexos descobertos - os
corpos se lhes emaranharam, agonizando num arqueamento de vício.
E o pano cerrou-se na mesma placidez
luminosa....
(cap. I - A confissão de Lúcio)
O espaço, nas obras, constituem, mais que
cenários, pretextos que não se diferenciam e não se especificam na construção
do verdadeiro espaço dos personagens: o espaço que aproxima (confunde)
realidade e sonho. Os momentos vividos nesses espaços têm mais densidade
psicológica do que concretude objetiva, estão mais ligados ao imaginário que à
realidade.
Os personagens assumem duas posições que
nos mostram como que um desdobramento de
personalidade: de um lado o narrador “verossímil”, que afirma estar lúcido e
relatar tão somente os simples fatos; de outro lado, o narrador “inverossímil”,
que aceita o jogo dos acontecimentos e inverte fantasia e realidade.
Tentam inferir fidelidade aos fatos que
relatam, mas ao mesmo tempo demonstram saber a incoerência, a falta de lucidez
do que contarão. Esse movimento de reiteração da verossimilhança da história
pressupondo a sua inverossimilhança será constante nas novelas, e será usado
como defesa para constatar a lucidez dos narradores.
Os narradores tentam explicar os fatos à
luz da razão, usando argumentos racionais e científicos em seu favor, tentando
induzir à lucidez. Porém, vão se mostrando cada vez mais perturbados, menos
coerentes.
O constante questionamento do narrador
sobre a lucidez dos fatos tem a intenção de produzir no leitor a constante
dúvida das narrações fantásticas (real ou imaginário?). As obras mantêm-se na
hesitação entre o real e o imaginário até o desfecho, mas sempre tentando
convencer o leitor da realidade dos fatos.
A perturbação dos fatos reflete-se na
escrita, cheias de interrogações, exclamações, repetições e reticências.
16 de maio. - Estou doente, decididamente!
(...)
18 de maio. - Acabo de consultar o meu
médico (...)
5 de julho. - Terei perdido a razão? O que
se passou na última noite é de tal modo estranho, que a minha cabeça fica
perdida quando recordo!
(...)
6 de julho. - Enlouqueço. Beberam outra
vez toda a minha água esta noite: ou antes, eu a bebi!
Mas fui eu? Fui eu? Quem? Quem seria? Oh!
meu Deus! Eu enlouqueço! Quem me salvará?
(...)
6 de agosto. - Desta vez eu não estou
louco. Eu vi... eu vi... eu vi!..
(...) Então fui tomado de uma cólera
furiosa contra mim mesmo; pois não é lícito a um homem sensato e sério sofrer
semelhantes alucinações.
Mas seria mesmo alucinação?
(...)
7 de agosto. - (...)
Indago comigo mesmo se não estarei
louco.(...)
Sem dúvida eu me julgaria louco,
absolutamente louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse
perfeitamente o meu estado, se não o sondasse, analisando-o com uma completa
lucidez. Quando muito, eu seria, afinal, um alucinado raciocinante.
(...)
16 de agosto. - (...) Mandei parar na
Biblioteca e tomei emprestado o grande tratado de Hermann Herestauss sobre os
habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno.
(...)
19 de agosto. - Já sei... já sei.. já sei
tudo! Acabo de ler isto na Revue du Monde Scientifique (...)
(O Horla - 2ª versão)
Mas aí, de súbito, uma estranha obsessão
começou no meu espírito... Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite
achei-me perguntando a mim próprio:
_ Mas no fim de contas quem é essa
mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito.
Donde surgira? Quando a encontrara o poeta? Mistério...
(A confissão de Lúcio - cap. III)
Depois, olhando melhor nem era só do seu
passado que eu ignorava tudo - também duvidava do seu presente (...). Sim, em
verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim (...). Pois bem,
pela minha parte, quando a não tinha a meu lado, coisa alguma que restava que,
materialmente, me pudesse provar a sua existência.
(A confissão de Lúcio - cap. V)
O tema das duas novelas nos coloca a
questão do eu versus o outro, ou do eu projetado no outro ou, ainda, da fusão do eu e do outro.
Nelas há a criação de um novo ser
imaginário (o outro) que
dá vazão aos sentimentos sufocados (à loucura?).
N’A confissão de Lúcio há a criação de Marta, obra de
voluptuosidade-arte, fruto da imaginação de Lúcio ou Ricardo ou de ambos.
N’O Horla há a criação de um ser invisível, que
se alimenta basicamente de água e que não se sabe ser real ou fruto da
imaginação do narrador.
Ora, esse outro são os sentimentos sufocados nos
personagens, que cresceram de tal modo que explodiram em um novo ser. Estes
sentimentos são frutos da homossexualidade enrustida, que é a chave das
novelas.
Em toda homossexualidade há o desejo e o
medo pelo outro. Quando o
medo é maior, a sexualidade se fecha e pode permanecer enrustida até a completa
maturidade. Em nossa sociedade, a homossexualidade é perversão, doença e/ou
vulgaridade, o que impede a realização do desejo, que para o homossexual nada
tem de vulgar.
Porém, o desejo sempre acaba por vir à
tona e há dois caminhos a seguir neste ponto: a aceitação da homossexualidade
ou a negação completa dos sentimentos, que pode levar à loucura. Em muitos
casos, a aceitação da homossexualidade é parcial e convertida numa bissexualidade.
Este parece ser o caso de Lúcio. A solução
encontrada foi a criação de Marta, um novo ser do sexo oposto, que funcionava
como intermediário entre os verdadeiros amantes, sem o ônus daquilo que é
socialmente interdito: o homossexualismo.
O narrador d’O Horla não se aceita e permanece numa linha
tênue entre a realidade e a loucura. Na verdade, para ele, os sentimentos que
vêm à tona são loucura.
A sugestão de homossexualismo é explícita em Sá Carneiro (que era
homossexual), conforme nos mostram os trechos abaixo, em que Marta pede um beijo
a Lúcio, na presença de Ricardo.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como
Ricardo insistisse, curvei-me trêmulo de medo, estendi os lábios mal os
pousando na pele...
E Marta:
_ Que beijo tão desengraçado! Parece
impossível que ainda não saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo,
ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para
mim... tomou-me o rosto... beijou-me...
O beijo de Ricardo fora igual, exatamente
igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante.
Eu sentira-o da mesma maneira.
(A confissão de Lúcio - cap. V)
Começou a parecer-me, não sei porquê, que
nunca a possuíra inteiramente, mesmo que não era possível possuir aquele corpo
por uma impossibilidade física qualquer: assim como se ela fosse do meu sexo!
E ao penetrar-me esta idéia alucinadora, eu
lembrava-me sempre que o beijo
de Ricardo, esse beijo masculino, me soubera às mordeduras de Marta, tivera a
mesma cor, a mesma perturbação...
(A confissão de Lúcio - cap. VI)
N’O Horla a sugestão é muito sutil. Passa
despercebida até. Têm-se de prestar atenção aos pormenores do relato, na
conotação que se dá a alguns fatos relatados.
Características relevantes são extraídas
de passagens, à primeira vista, menores. O narrador é um senhor (conforme a
primeira versão, com 42 anos de idade), solteiro, com certa fortuna e uma
grande casa com criadagem. Ele não faz menção, em momento algum da novela, a
mulheres ou a sexo. Ora, não é comum um homem (heterossexual) nessa posição
omitir a figura feminina e, muito menos, o sexo de sua vida - a menos que isto não
esteja presente nela.
O narrador se refere ao novo ser no
masculino, não como uma generalização, mas adotando um sexo para ele. As
descrições dos “ataques” noturnos do ser têm certa conotação erótica.
Eu o sinto e o vejo... e sinto também que
alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe para a minha cama,
ajoelha-se sobre o meu peito, me toma o pescoço entre as suas mãos e aperta...
aperta...
(...)
8 de agosto. - Passei ontem uma terrível
noite. Ele não se manifesta mais, mas eu o sinto perto de mim, espiando-me,
olhando-me, penetrando-me, dominando-me (...)
Dormi, no entanto.
(O Horla - 2ª versão)
Acrescente-se o curioso título da novela,
em francês Le Horla. O
artigo do nome é masculino, porém a terminação é feminina. Há também a hipótese
do nome derivar da fusão do nome da mãe de Maupassant com o nome de seu melhor amigo. Clássicos da
homossexualidade, psicologicamente falando: a mãe e um amor travestido de
amizade.
Os personagens chegam a um limite da
loucura, quando percebem que o outro,
na verdade, está dentro deles mesmos.
Quando se dão conta da realidade de fato e abandonam a realidade artística (no caso de Lúcio) e a realidade inverossímil (no caso do narrador d’O Horla),
o confronto com o eu-outro é tão violento que o desfecho de ambas
as novelas é trágico: o assassínio (ou suicídio).
O medo prevalece em ambos os personagens e
faz com que reneguem seus sentimentos e sua própria vida.
14 de agosto. - Estou perdido! Alguém
possui a minha alma e a governa! alguém ordena todos os meus atos, todos os
meus gestos, todos os meus pensamentos. Eu nada mais sou em mim, nada mais sou
que um espectador, escravizado, e aterrorizado de todas as coisas que eu faço.
19 de agosto. - (...)
Mas que tenho? É ele, o Horla, que me
habita, que me faz pensar estas loucuras! Ele está em mim, ele se torna a minha
alma; eu o matarei!
Eu o matarei.
(...)
10 de setembro. - (...) Tudo acabado.
Enfim... Mas terá ele morrido?
(...)
Não... não... sem dúvida nenhuma, sem
dúvida nenhuma... ele não está morto... Então... então.. vai ser preciso agora
que eu me mate!...
(O Horla - 2ª versão)
Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta
brutalmente...
Em pé, ao fundo da casa, diante de uma
janela, Marta folheava um livro...
A desventurada mal teve tempo para se
voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco
e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à
queima roupa...
Marta tombou inanimada no solo... Eu não
arredara pé do limiar...
E então foi o Mistério... Mistério o
fantástico de minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia
estiraçado junto da janela não era Marta - não! -, era meu amigo, era Ricardo..
E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em
silêncio, como se extingue uma chama...
(A confissão de Lúcio - cap. VII)
No momento em que a tensão se torna
insuportável para a consciência, a própria vida do outro é destruída. Mas o eu e ooutro são um só e, portanto, o eu também tem de ser destruído.
A epígrafe de Fernando Pessoa, utilizada
por Sá Carneiro em seu romance, reflete um pouco a tensão das novelas:
(...) assim éramos nós obscuramente dois,
nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro
viveria (...)
Textos:
O Horla (1ª e 2ª versão), Guy de
Maupassant (1886)
A confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro
(1913)
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