Em Estalingrado não é o comunismo que triunfa sobre o fascismo, ou antes, não é só isso. Analisando de mais longe, quer dizer, com a perspectiva necessária para abarcar o sentido de tão amplos acontecimentos, é a nossa civilização humanista que faz parar o desenvolvimento de outra civilização, luciferina, mágica, não feita para o homem mas para qualquer coisa acima do homem.
Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL
Não há diferenças essenciais entre as causas dos atos civilizadores da U.R.S.S. e dos Estados Unidos. A Europa dos séculos XVIII e XIX forneceu o motor que ainda serve. Não faz exatamente o mesmo barulho em Nova Iorque e em Moscou, e é tudo. No fundo, era de fato um mundo inteiro que estava em guerra contra a Alemanha, e não uma aliança momentânea de inimigos fundamentais. Um só mundo que acredita no progresso, na justiça, na igualdade e na ciência. Um só mundo que tem a mesma visão do cosmos, a mesma compreensão das leis universais e que reserva para o homem no Universo o mesmo lugar, nem grande nem pequeno demais. Um só mundo que acredita na razão e na realidade das coisas. Um só mundo
que devia desaparecer completamente para dar lugar a outro de que Hitler se sentia o anunciador.
É o pequeno homem do mundo livre, o habitante de Moscou, de Boston, de Limoges ou de Liège, o pequeno homem positivo, racionalista, mais moralista que religioso, desprovido do sentido metafísico, sem apetite para o fantástico, aquele que Zaratustra classifica como um homem-fingido, uma caricatura, é esse pequeno homem saído da coxa do burguês médio que irá destruir o grande exército destinado a abrir o caminho ao super-homem, ao homem-Deus, senhor dos elementos, dos climas e das estrelas. E, por um curioso capricho da justiça - ou da injustiça - é esse pequeno homem de alma tacanha que, anos mais tarde, vai lançar para o céu um satélite, e inaugurar a era interplanetária. Estalingrado e o lançamento do Sputnik são bem, como dizem os Russos, as duas vitórias decisivas, e eles aproximaram-nas uma da outra ao celebrar, em 1957, o aniversário da sua revolução Foi publicada pelos jornais uma fotografia de Goebbels. Eles acreditavam que íamos desaparecer. Era necessário que triunfássemos para criar o homem interplanetário.
A resistência desesperada, louca, catastrófica de Hitler, no momento em que, como era evidente, tudo estava perdido, só se explica pela expectativa do dilúvio descrito pelos horbigerianos. Se não fosse possível modificar a situação por processos humanos, restava a possibilidade de provocar o julgamento dos deuses. O dilúvio sobreviria, como um castigo, para a humanidade inteira. A noite ia de novo cobrir o globo e tudo ficaria sepultado por tempestades de água e granizo. Hitler, diz Speer com horror, tentava deliberadamente fazer com que tudo morresse com ele. Já não era mais que um homem para quem o fim da sua própria vida significava o fim de todas as coisas. Goebbels, nos seus últimos editais, saúda com entusiasmo os bombardeiros inimigos que destroem o seu país: Sob os destroços das nossas cidades aniquiladas estão enterradas as estúpidas realizações do século XIX. Hitler faz reinar a morte: prescreve a destruição total da Alemanha, manda executar os prisioneiros, condena o seu antigo cirurgião, manda matar o cunhado, pede a morte para os soldados vencidos, e desce ele próprio ao túmulo. Hitler e Goebbels, escreve Trevor Roper, convidaram o povo alemão a destruir as suas cidades e as suas fábricas, a fazer ir pelos ares os seus diques e as suas pontes, a sacrificar os caminhos de ferro e todo o material circulante, e tudo isto em proveito de uma lenda, em nome de um crepúsculo dos deuses. Hitler pede sangue, envia as suas últimas tropas para o sacrifício: As perdas nunca parecem bastante elevadas, diz ele. Não são os inimigos da Alemanha que ganham, são as forças universais que se preparam para destruir a Terra, punir a humanidade, porque a humanidade preferiu o gelo ao fogo, as potências da morte às potências da vida e da ressurreição.
O céu vai vingar-se. Ao morrer, resta apenas reclamar o grande dilúvio. Hitler oferece um sacrifício à água: manda inundar o metropolitano de Berlim, onde morrem 300 000 pessoas refugiadas nos subterrâneos. É um ato de magia iniciática: esse gesto provocará movimentos de apocalipse no céu e na Terra. Goebbels publica um último artigo antes de matar, no Bunker, a mulher, os filhos e de se matar a ele próprio. Intitula o seu edital de despedida: E mesmo que assim fosse. Diz que o drama não se representa à escala da terra, mas do cosmos. O nosso fim será o fim de todo o Universo.
Eles erguiam o seu pensamento demencial em direção aos espaços infinitos, e morreram num subterrâneo. Julgavam preparar o homem-deus ao qual os elementos iriam obedecer. Acreditavam no ciclo de fogo. Venceriam o gelo, tanto na Terra como no céu, e os seus soldados morriam ao deitar as calças abaixo, com o ânus congelado. Alimentavam uma visão fantástica da evolução das espécies, aguardavam formidáveis mutações. E as últimas notícias do mundo exterior foram dadas pelo guarda-mor do Jardim Zoológico de Berlim, que, empoleirado numa árvore, telefonava ao Bunker. Poderosos, esfaimados e orgulhosos, profetizavam: A grande era do mundo renasce, Os anos de ouro reaparecem.
Como uma serpente, a Terra Renova os seus fatos gastos pelo Inverno Mas há sem dúvida uma profecia mais profunda que condena os próprios profetas e os vota a uma morte mais do que trágica: caricatural. No fundo dos seus subterrâneos, ouvindo o rumor cada vez mais forte dos tanques, terminavam a sua vida arrebatada e má entre as revoltas, dores e súplicas com que termina a visão de Shelley que se intitula Hellas: Oh! esperai! O ódio e a morte deverão reaparecer? Esperai! Deverão os homens matar e morrer? Esperai! Não esgoteis até ao sedimento.
A urna de uma amarga profecia! O mundo está cansado do passado. Oh! Oxalá morra ou repouse enfim!
A Terra é oca. - Vivemos no interior. - O Sol e a Lua estão no centro da Terra. - O radar ao serviço dos magos. -Uma religião nascida na América. - O seu profeta alemão era aviador. - O anti-Einstein. - Um trabalho de louco. - A terra côncava, os satélites artificiais e os alérgicos à noção do infinito. - Uma arbitragem de Hitler. - Para além da coerência.
Estamos em Abril de 1942. A Alemanha lança todas as suas forças na guerra. Nada, segundo parece, poderia afastar os técnicos, os sábios e os militares da sua tarefa imediata. No entanto uma expedição organizada, com a concordância de Goering, Himmler e Hitler, deixa o Reich em grande segredo. Os membros dessa expedição são alguns dos melhores especialistas do radar. Sob a orientação do doutor Heinz Fisher, conhecido pelos seus trabalhos sobre os raios infravermelhos, desembarcam na ilha báltica de Rügen. Tinham-nos munido dos mais aperfeiçoados aparelhos de radar. No entanto, esses aparelhos ainda são raros nessa época e estão divididos pelos pontos nevrálgicos da defesa alemã. Mas as observações a que se vão dedicar na ilha de Rügen são consideradas, pelo alto estado-maior da marinha, capitais para a ofensiva que Hitler prepara sobre todas as frentes.
Assim que chega, o doutor Fisher manda apontar os radares para o céu, sob um ângulo de 45 graus. Aparentemente, nada há a revelar na direção escolhida. Os outros membros da expedição supõem que se trata de uma experiência. Ignoram o que esperam deles. O objetivo das investigações ser-lhes-á revelado mais tarde. Constatam, intrigados, que os radares continuam apontados durante vários dias. É então que recebem a seguinte notícia: o Führer tem bons motivos para supor que a Terra não é convexa, mas côncava. Nós não habitamos o exterior do globo, mas o interior. A nossa posição é comparável à de moscas a caminharem no interior de uma bola. O objetivo da expedição é demonstrar cientificamente essa verdade. Por reflexão de ondas de radar propagando-se em linha reta obter-se-ão imagens de pontos extremamente afastados no interior da esfera.
O segundo objetivo da expedição é obter por reflexão imagens da armada inglesa ancorada em Scapaflow.
Martin Gardner narra essa louca aventura da ilha de Rügen no seu livro In the name of Science. O próprio doutor Fisher viria a referir-se-lhe, depois da guerra. O professor Gerard S. Kuiper, do observatório do monte Palomar, consagrou, em 1946, uma série de artigos à doutrina da Terra oca que presidira a essa expedição. Escrevia ele em Popular Astronomy: Personalidades importantes da marinha alemã e da aviação acreditavam na teoria da Terra oca. Pensavam especialmente que ela seria útil para marcar a posição exata da armada inglesa, visto que a curvatura côncava da Terra permitiria observar a grande distância, por intermédio dos raios infravermelhos, menos curvos que os raios visíveis. O engenheiro Willy Ley narra os mesmos fatos no seu estudo de Maio de 1947: Pseudociências entre os Nazistas.
É extraordinário, mas autêntico: altos dignitários nazistas, peritos militares negaram pura e simplesmente o que parece uma evidência para uma criança do nosso mundo civilizado, como seja que a Terra é uma bola cheia e que nós estamos à superfície. Por cima de nós, pensa a criança, estende-se um Universo infinito, com as suas miríades de estrelas e as suas galáxias. Por baixo de nós estão os rochedos. Quer seja francesa, inglesa, americana ou russa, nesse ponto a criança está de acordo com a ciência oficial e também com as religiões e as filosofias admitidas. As nossas morais, as nossas artes, as nossas técnicas baseiam-se nessa visão que a experiência parece verificar. Se procuramos aquilo que melhor pode assegurar a unidade da civilização moderna, é na cosmogonia que o encontraremos. Sobre o essencial, quer dizer, sobre a situação do homem e da Terra no Universo, estamos todos de acordo, quer sejamos marxistas ou não. Só os nazistas não estavam de acordo.
Para os partidários da Terra oca que organizaram a famosa expedição paracientífica da ilha de Rügen, habitamos no interior de uma bola presa numa grande quantidade de rochedo que vai até ao infinito. Vivemos agarrados sobre a superfície côncava. O céu está no centro dessa bola: é uma massa de gás azulada, com pontos de luz brilhante que tomamos por estrelas. Ali só há o Sol e a Lua, mas infinitamente mais pequenos do que dizem os astrônomos ortodoxos. O Universo limita-se a isso. Estamos sós, e envolvidos por rochedos.
Vamos ver como nasceu essa visão das lendas, da intuição e da imaginação. Em 1942, uma nação comprometida numa guerra na qual a técnica é soberana pede à ciência que alimente a mística, à mística que enriqueça a técnica. O doutor Fisher, especialista do infravermelho, recebe como missão a ordem de pôr o radar ao serviço dos magos.
Quer em Paris, quer em Londres, nós temos os nossos pensadores excêntricos, os nossos descobridores de cosmogonias extravagantes, os nossos profetas de toda a espécie de fantasias.
Escrevem opúsculos, freqüentam as lojas dos velhos livreiros, cavaqueiam em Hyde Park ou na Sala de Geografia do Boulevar Saint-Germain. Na Alemanha hitleriana vemos pessoas dessa espécie mobilizar as forças da nação e a aparelhagem técnica de um exército em guerra. Vemo-las influenciar os altos estados-maiores, os chefes políticos, os sábios. É que estamos em presença de uma civilização completamente nova, baseada no desprezo pela cultura clássica e pela razão. Nessa civilização, a intuição, a mística, a inspiração poética são colocadas exatamente no mesmo plano que a investigação científica e o conhecimento racional. Quando ouço falar de cultura pego no meu revólver, diz Goering. Esta frase terrível tem dois sentidos: o literal, onde se vê Goering-Ubu partir a cabeça aos intelectuais, e um sentido mais profundo e também mais verdadeiramente prejudicial àquilo a que chamamos a cultura, onde se vê Goering atirar balas explosivas que são a cosmogonia horbigeriana, a doutrina da Terra oca ou a mística do grupo Tule.
A doutrina da Terra oca nasceu na América no princípio do século XIX. A 10 de Abril de 1818, todos os membros do Congresso dos Estados Unidos, os diretores das Universidades e alguns grandes sábios receberam a seguinte carta: São Luís, Território do Missouri, América do Norte, 10 de Abril:
Ao mundo inteiro, Declaro que a Terra é oca e habitável interiormente. Ela contém diversas esferas sólidas, concêntricas, colocadas uma dentro da outra, e é aberta no pólo de 12 a 16 graus. Com prometo-me a demonstrar a realidade do que afirmo e estou pronto a explorar o interior da Terra se o mundo aceita auxiliar-me no meu empreendimento. CLEVES SYMNES, antigo capitão de infantaria de Ohio.
Sprague de Camp e Willy Ley, na sua bela obra Do Atlântico ao Eldorado, resumem da seguinte forma a teoria e a aventura do antigo capitão de infantaria: Symnes afirmou, visto tudo ser oco neste mundo, tanto os ossos como os cabelos, os caules das plantas, etc., que os planetas também o eram e que no caso da Terra, por exemplo, podiam distinguir-se cinco esferas colocadas umas no interior das outras, todas habitáveis, tanto no interior como no exterior e todas equipadas com vastas aberturas polares pelas quais os habitantes de cada esfera podem ir de qualquer ponto do interior para outro, ou para o exterior, como uma formiga que percorresse o interior e depois o exterior de uma taça de porcelana... Symnes organizava as suas tournées de conferências como se fossem campanhas eleitorais. Quando morreu deixou montões de notas e provavelmente o pequeno modelo de madeira do globo de Symnes, que se encontra atualmente na Academia das Ciências Naturais de Filadélfia.
Sem comentários:
Enviar um comentário