O monge mostrou-lhe a gamela, com um pequeno gesto de escusa, mas o outro começou a rir cada vez mais.
- O truque da pobreza. . . também já mo empregaram!afirmou ele à sua vítima em tom sarcástico -, mas o último pedinte que mandei parar tinha meio cheio de ouro na bota. . . Vamos, despe-te depressa!
Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL
Depois de o monge ter cumprido a ordem, o homem revistou-lhe as roupas, nada encontrou e voltou a entregar-lhas.
- Agora - continuou -, vejamos esse embrulho.
- É apenas um documento, senhor - protestou o frade -, um documento sem valor a não ser para o proprietário.
- Abre o embrulho, já te disse!
Frei Francis obedeceu sem uma palavra e as iluminuras do pergaminho em breve brilharam sob os raios solares. O gatuno deu um assobio admirativo.
- Bonito! A minha mulher é que vai ficar contente por poder pregar isto na parede da cabana!
A estas palavras, o pobre monge sentiu o coração parar e começou a murmurar uma silenciosa oração: Se tu mo enviaste para me pôr à prova, ó Senhor, suplicou com fervor, dá-me pelo menos a coragem de morrer como um homem, pois se está escrito que ele mo vai roubar, só o poderá tirar ao cadáver do seu indigno servo!
- Embrulha-me o objeto! - ordenou de súbito o ladrão, cuja decisão estava tomada.
- Por quem é, senhor - gemeu Frei Francis -; não quer decerto privar um pobre homem de um trabalho em que empenhou a vida inteira... Passei quinze anos a iluminar este manuscrito e...
- O quê? - interrompeu o gatuno. - Foste tu próprio que o fizeste? E começou a rir soltando berros.
-Não compreendo, senhor - retorquiu o monge, corando ligeiramente -, o que possa haver de divertido nisso. . .
- Quinze anos! -disse-lhe o homem entre dois acessos de hilaridade, quinze anos! E por que motivo, és capaz de me dizer? Por um pedaço de papel! Quinze anos... Ah! Pegando com ambas as mãos na folha iluminada preparou-se para a rasgar. Então Frei Francis deixou-se cair de joelhos a meio do atalho.
- Maria Santíssima! - exclamou. - Suplico-o, senhor, por amor de Deus!
O ladrão pareceu um pouco lisonjeado; atirando o pergaminho ao chão, perguntou em tom sarcástico:
- Estarias pronto a bater-te para defender o teu pedaço de papel.
- Se o deseja, senhor! Farei tudo o que quiser! Ambos se puseram em guarda. O monge benzeu-se precipitadamente invocando o Céu, recordando-se que a luta fora outrora um desporto autorizado pela divindade - depois lançou-se ao combate. . . três segundos depois jazia sobre as pedras pontiagudas que lhe martirizavam a espinha, meio sufocado por uma pequena montanha de músculos rijos.
- E pronto! - disse modestamente o ladrão, que se ergueu e pegou no pergaminho.
Mas o monge arrastava-se de joelhos, com as mãos postas, ensurdecendo-o com súplicas desesperadas.
- Credo! - escarneceu o ladrão. - Eras capaz de me beijar as botas, se eu to pedisse, para que te devolvesse a estampa! Como única resposta, Frei Francis agarrou-o de um salto e começou a beijar com fervor as botas do vencedor.
Era demais, mesmo para um refinado patife. Com uma praga, o gatuno atirou o manuscrito ao chão, saltou para cima do burro e desapareceu... Francis imediatamente caiu sobre o manuscrito e agarrou-o. Depois começou a saltitar atrás do homem pedindo em sua intenção todas as bênçãos do Céu e agradecendo ao Senhor ter criado malandrins tão desinteressados. . .
No entanto, assim que o ladrão e o burro desapareceram atrás das árvores, o monge perguntou a si próprio, com certa tristeza, por que motivo, de fato, consagrara quinze anos da sua vida àquele bocado de pergaminho. . . As palavras do gatuno ainda lhe soavam aos ouvidos: E por que motivo, és capaz de me dizer?... Sim, porquê, de fato, por que razão?
Frei Francis retomou o caminho, a pé, muito meditativo, a cabeça inclinada debaixo do capuz. . . Em certo momento veio-lhe mesmo a idéia de atirar o documento para o meio do mato e ali o deixar, à chuva. . . Mas o Padre Abade aprovara a sua decisão de o entregar às autoridades do Novo Vaticano, à maneira de presente. O monge refletiu que não podia lá chegar de mãos vazias, e continuou, tranquilamente, o seu caminho.
Chegara o momento. Perdido na imensa e majestosa basílica, Frei Francis abismava-se com a prestigiosa magia das cores e dos sons. Depois de invocarem o Espírito infalível, símbolo de toda a perfeição, ergueu-se um bispo -era Monsenhor Di Simone, reconheceu o monge, o advogado do santo - e adjurou S. Pedro a pronunciar-se, por intermédio de S.S. Leão XXII, ordenando ao mesmo tempo a toda a assistência que prestasse atenção às palavras solenes que iam ser pronunciadas.
Nessa altura, o Papa ergueu-se calmamente e proclamou que Isaac Edward Leibowitz seria de futuro um santo. Estava consumado. Dali em diante o obscuro técnico de outrora fazia parte da falange celestial. Frei Francis imediatamente dirigiu uma prece ao seu novo amo, enquanto o coro entoava o Te Deum.
Caminhando num passo vivo, o Sumo Pontífice, um momento depois, surgiu tão bruscamente na sala de audiência onde o fradinho aguardava que a surpresa cortou o fôlego a Frei Francis, privando-o um instante da palavra. Ajoelhou-se à pressa para beijar o anel do Pescador e receber a bênção, depois ergueu-se desajeitadamente, atrapalhado com o belo pergaminho iluminado que mantinha atrás das costas. Compreendendo o motivo da sua perturbação, o Papa teve um sorriso.
- O nosso filho trouxe-nos um presente? - perguntou.
O monge rouquejou, meneou estupidamente a cabeça e estendeu finalmente o manuscrito, que o vigário de Cristo fixou muito demoradamente sem nada dizer, com o rosto perfeitamente impassível.
- Não tem importância - balbuciou Frei Francis, que sentia a sua perturbação aumentar à medida que o silêncio do Pontífice se prolongava -, é apenas uma pobre coisa, um miserável presente... Chego a ter vergonha de ter passado tanto tempo a... Calou-se de súbito, sufocado pela emoção.
Mas o Papa parecia não o ter ouvido.
-Compreende o significado do simbolismo empregado por Santo Isaac? - perguntou ele ao monge, enquanto examinava curiosamente o traçado do plano.
Como resposta, Frei Francis apenas pôde abanar negativamente a cabeça.
- Seja qual for o significado... - começou o Papa, mas interrompeu-se de súbito e começou bruscamente a falar de outra coisa. Se tinham dado ao monge a honra de assim o receber, explicou-lhe, não era porque as autoridades eclesiásticas, oficialmente, tivessem qualquer opinião a respeito do peregrino que um monge tinha visto. . . Frei Francis fora tratado daquela maneira porque o queriam recompensar por ter descoberto importantes documentos e santas relíquias. Assim tinham sido classificadas as suas descobertas, sem que aliás entrassem em linha de conta as circunstâncias que as rodearam. . . E o monge começou a balbuciar agradecimentos, enquanto o Sumo Pontífice novamente se perdia na contemplação dos esquemas tão belamente iluminados.
- Seja qual for o significado - disse ele por fim -, este fragmento de saber, de momento morto, recuperará vida qualquer dia.
Sorridente, teve um piscar de olhos em direção ao monge.
- E conserva-lo-emos sob vigilância até esse dia - concluiu. Só então Frei Francis reparou que a sotaina branca do Papa tinha um buraco e que todas as suas vestimentas estavam bastante velhas. O tapete da sala de audiência também se apresentava muito usado aqui e além e o estuque do teto caía aos bocados.
Mas havia livros sobre as prateleiras que cobriam as paredes, livros enriquecidos por admiráveis iluminuras, livros que tratavam de coisas incompreensíveis, livros pacientemente recopiados por homens cuja tarefa não consistia em compreender, mas em salvaguardar. E aqueles livros aguardavam que chegasse a sua hora.
- Adeus, filho bem-amado.
O humilde guardião da chama do saber partiu novamente a pé em direção da sua longínqua abadia... Quando se aproximou da região freqüentada pelo gatuno sentiu-se estremecer de alegria. Se por acaso o ladrão estivesse de folga, naquele dia, o fradinho sentia-se disposto a sentar-se e aguardar o seu regresso. Pois sabia, desta vez, que resposta dar à sua pergunta.
SEGUNDA PARTE
ALGUNS ANOS NO ALGURES ABSOLUTO
Todas as bolas no mesmo saco. - Os desesperos do historiador. - Dois amadores do insólito. -No fundo do Lago do Diabo. - Um antifascismo oco. - Bergier e eu perante a imensidão do extraordinário. - Tróia também era uma lenda. - A história em atraso. - Do visível banal ao invisível fantástico. - Apólogo do escaravelho de ouro. Pode ouvir-se a ressaca do futuro. - Não há apenas as frias mecânicas.
Durante a ocupação alemã vivia em Paris, no Bairro Latino, um velho original que se vestia como um burguês do século XVII, só lia Saint-Simon, comia à luz de velas e tocava espineta. Apenas saía para ir ao merceeiro e ao padeiro, com um capuz sobre a cabeleira empoada, e uma grande capa que deixava ver as meias pretas e os sapatos com fivelas. O tumulto da Libertação, os tiros e os movimentos populares perturbaram¬-no. Sem nada compreender, mas agitado pelo medo e pelo furor, precipitou-se um dia para a sacada da sua casa, com a pena de pato na mão, peitilho de rendas ao vento, e gritou, numa vibrante e estranha voz de solitário:
Viva Coblença!
Não compreendendo e estranhando a atitude insólita, os vizinhos excitados sentiram instintivamente que o homenzinho vivia noutro mundo e devia estar em relações com o mal. O grito pareceu alemão, subiram as escadas, arrombaram a porta, atacaram-no e ele morreu.
Nessa mesma manhã, um capitão resistente muito jovem, que acabava de conquistar a Prefeitura, mandava colocar palha sobre os tapetes do enorme gabinete e dispor as espingardas em forma de feixe, a fim de ter a ilusão de viver de acordo com um boneco do seu primeiro livro de história.
Nessa mesma hora descobriam nos Inválidos a mesa, os treze caldeirões, os estandartes, as túnicas e as cruzes da última assembléia dos Cavaleiros da Ordem tectônica, bruscamente interrompida.
Sem comentários:
Enviar um comentário