Os sonhadores vêem através das malhas um mundo quadriculado, só distinguem aberturas enganadoras, agem em conseqüência e não sabem que esses quadros são apenas os fragmentos insensatos de um todo enorme.
Louis Pauwels e Jacques Bergier. DIFEL
Esses sonhadores não são, como talvez o suponhas, os lunáticos e os poetas; são os trabalhadores, os sem repouso do Mundo, os possessos da loucura de agir. Assemelham-se a escaravelhos feios e laboriosos que se arrastam ao longo de um cano liso para nele mergulharem ao chegar lá acima. Dizem que velam, mas aquilo que julgam uma vida não é em realidade senão um sonho, determinado antecipadamente nos mínimos pormenores e subtraído à influência da sua vontade. Existiram e ainda existem alguns homens que souberam que sonhavam, os pioneiros que avançaram até aos baluartes atrás dos quais se esconde o eu eternamente desperto - videntes como Descartes, Schopenhauer e Kant. Mas eles não possuíam as armas necessárias para a tomada da fortaleza e o seu apelo ao combate não acordou os adormecidos. Velar é tudo.
O primeiro passo para esse objetivo é tão simples que qualquer criança o pode dar. Só aquele que tem o espírito falsificado esqueceu como se caminha, e mantém-se paralisado sobre os seus dois pés, pois não se quer privar das muletas que herdou dos
seus antecessores. Velar é tudo.
Vela em tudo o que fazes! Não te julgues já desperto. Não, tu dormes e sonhas.
Reúne todas as tuas forças e espalha um instante pelo teu corpo este sentimento: agora, eu vejo!
Se o conseguires, reconhecerás imediatamente que o estado no qual te encontravas surge então como uma modorra e um sono.
É o primeiro passo hesitante do longo, muito longo percurso que leva da servidão ao completo poder.
Desta forma avança, de despertar em despertar.
Não existe pensamento tormentoso que desta maneira não possas banir. Ele fica para trás e já não te pode atingir. Estendeste sobre ele como a copa de uma árvore se eleva por sobre os ramos secos.
As dores afastam-se de ti como folhas mortas quando essa vigília se apossa igualmente do teu corpo.
Os banhos gelados dos brâmanes, as noites de vigília dos discípulos de Buda e dos ascetas cristãos, os suplícios dos faquires não são mais que os ritos estereotipados indicando que ali se erguia outrora o templo daqueles que se esforçavam por velar.
Lê as escrituras Sagradas de todos os povos da Terra. Em cada uma delas passa comoum fio vermelho a ciência dissimulada da vigília. É a escada de Jacob, que combate toda a noite com o anjo do Senhor, até que chegue o dia e obtenha a vitória.
Deves subir, um após outro, os degraus do despertar, se queres vencer a morte.
O degrau inferior já se chama: gênio.
Como devemos nós chamar os degraus superiores? Ficam desconhecidos da multidão e são tidos como lendas.
A história de Tróia foi considerada uma lenda, até que finalmente um homem arranjou coragem de investigar por si próprio.
Sobre esse caminho da vigília, o primeiro inimigo que encontrarás será o teu próprio corpo. Ele lutará contigo até ao primeiro cantar do galo. Mas se vislumbrares a luz da vigília eterna que te afasta dos sonâmbulos que supõem ser homens e ignoram que são deuses adormecidos então o sono do teu corpo desaparecerá também e o Universo submeter-se-á a ti.
Então poderás operar milagres, se quiseres, e já não estarás reduzido, como um humilde escravo, a esperar que um cruel e falso deus seja suficientemente amável para te cumular de presentes ou te cortar a cabeça.
Há evidentemente a felicidade do bom cão fiel: servir um amo. Ela deixará de existir para ti - mas sê franco para contigo próprio: gostarias tu, mesmo agora, de trocar o lugar com teu cão?
Não te deixes apavorar pelo medo de não atingires o objetivo nesta vida. Aquele que descobriu este caminho regressa sempre ao mundo com uma maturidade interior que lhe torna possível a continuação do seu trabalho. Ele nasce como gênio.
O caminho que te mostro está semeado de acontecimentos estranhos: mortos que conheceste hão-de erguer-se e falar-te! São apenas imagens. Silhuetas luminosas aparecer-te-ão para te abençoar. São apenas imagens, formas exaltadas pelo teu corpo que, sob a influência da tua vontade transformada, morrerá de uma morte mágica e se tornará espírito, tal como o gelo, atingido pelo fogo, se dissolve em vapor.
Quando tiveres abandonado em ti o cadáver é que então poderás dizer: agora o sono afastou-se de mim para sempre. Então dar-se-á o milagre em que os homens não acreditam - porque, enganados pelos seus sentidos, não percebem que matéria e força são a mesma coisa - nem compreendem, esse milagre que, mesmo se o enterrarem, não haverá cadáver no caixão.
Só então poderás diferenciar o que é realidade ou aparência. Aquele que tu encontrares só poderá ser um dos que seguiram o caminho antes de ti.
Todos os outros são sombras.
Até ali tu não sabes se és a criatura mais feliz ou a mais infeliz. Mas nada receies. Nem um sequer dos que seguiram pelo caminho da vigília, mesmo se alguma vez se perdeu, jamais foi abandonado pelos seus guias.
Quero dar-te um sinal pelo qual poderás reconhecer se uma aparição é realidade ou miragem: se ela se aproxima de ti, se a tua consciência se perturba, se as coisas do mundo exterior são vagas ou desaparecem, desconfia. Acautela-te! A aparição não passa de uma parte de ti próprio. Se não a compreendes, é apenas um espectro sem consistência, um gatuno que consome uma parte da tua vida.
Os gatunos que adquirem a força da alma são piores do que os gatunos do Mundo. Atraem-te como fogos-fatuos nos pântanos de uma esperança enganadora, para te deixarem só nas trevas e desaparecerem para sempre.
Não te deixes enganar por nenhum milagre que eles pareçam fazer por ti, por nenhum nome sagrado que se derem, por nenhuma profecia que exprimam, nem mesmo se esta se realizar; eles são os teus inimigos mortais, expulsos do inferno do teu próprio corpo e com os quais tu lutas pelo domínio.
Sabe que as forças maravilhosas que eles possuem são as tuas próprias - desviadas por eles para te manterem na escravatura. Eles não podem viver fora da tua vida, mas se os venceres ficarão aniquilados, como ferramentas mudas e dóceis que poderás empregar segundo as tuas necessidades.
Inúmeras são as vítimas que eles fizeram entre os homens.
Lê a história dos visionários e dos sectários e compreenderás que o caminho que segues está semeado de crânios.
Inconscientemente a humanidade ergueu contra eles um muro: o materialismo. Esse muro é uma defesa infalível, é uma imagem do corpo mas é também o muro de uma prisão que dissimula a vista.
Atualmente estão dispersos e a fênix da vida interior ressuscita das cinzas nas quais esteve deitada durante muito tempo, como morta, mas os abutres de outro mundo também começam a bater as asas. É por isso que deves tomar cuidado. A balança sobre a qual deporás a tua consciência mostrar-te-á quanto podes ter confiança nessas aparições. Quanto mais desperta ela estiver, mais se inclinará a teu favor.
Se um guia, um irmão de outro mundo espiritual te quer aparecer, deve poder fazê-lo sem despojar a tua consciência. Podes pousar a mão sobre ele como Tomé o incrédulo.
Seria fácil evitar as aparições e seus perigos. Basta conduzires-te como um homem vulgar. Mas que ganhas com isso?
Continuas a ser um prisioneiro na jaula do teu corpo até que o carrasco Morte te conduza ao cadafalso.
O desejo dos mortais de verem os seres sobrenaturais é um grito que desperta até os fantasmas do inferno, porque semelhante desejo não é puro; - porque é mais avidez do que desejo, porque quer tomar de qualquer maneira em vez de gritar para aprender a dar.
Todos aqueles que consideram a Terra como uma prisão, todas as pessoas piedosas que imploram a libertação evocam sem se aperceberem o mundo dos espectros. Fá-lo igualmente tu próprio. Mas conscientemente.
Para aqueles que o fazem inconscientemente existirá uma mão invisível que os possa retirar do pântano onde se atolam? Eu não o acredito.
Quando sobre o caminho do despertar atravessarás o reino dos espectros, reconhecerás pouco a pouco que eles são simplesmente pensamentos que de súbito poderás ver com os teus próprios olhos. Eis porque te são estranhos e parecem ser criaturas, pois a linguagem das formas é diferente da do cérebro.
Então chegou o momento em que a transformação se dá: os homens que te rodeiam transformar-se-ão em espectros.
Todos aqueles que amaste serão, de súbito, larvas. Mesmo o teu próprio corpo.
Não se pode imaginar mais terrível solidão que a do peregrino no deserto, e quem não sabe encontrar aí a fonte da vida ? morre de sede.
Tudo o que aqui te digo se encontra nos livros dos homens piedosos de todos os povos: a vinda de um novo reino, a vigília, a vitória sobre o corpo e a solidão.
E no entanto um abismo intransponível nos separa dessas pessoas piedosas: elas supõem que se aproxima o dia em que os bons entrarão no paraíso e os maus serão atirados para o inferno. Nós sabemos que um tempo virá em que muitos despertarão e serão separados dos adormecidos que não podem compreender o que significa a palavra vigília. Nós sabemos que não existe o bom e o mau, mas apenas o exato e o falso. Eles crêem que velar significa manter os seus sentidos lúcidos e os olhos abertos durante a noite, de forma que o homem possa fazer as suas orações. Nós sabemos que a vigília é o despertar do eu imortal e que a insônia do corpo é uma conseqüência natural. Eles crêem que o corpo deve ser descurado e desprezado porque é pecador. Nós sabemos que não existe pecado; o corpo é o começo da nossa obra e vimos à Terra para transformar em espírito. Eles crêem que deveríamos viver na solidão com o nosso corpo para purificar o espírito. Nós sabemos que o nosso espírito deve primeiramente isolar-se para transfigurar o corpo.
Só a ti te cabe a escolha do caminho a tomar: ou o nosso ou o deles. Deves agir segundo a tua própria vontade.
Não tenho o direito de te aconselhar. É mais salutar colher segundo a tua própria decisão um fruto amargo sobre uma árvore, do que ver pendurar um fruto doce aconselhado por outrem.
Mas não faças como muitos que sabem que está escrito:
examinai tudo e só conservai o melhor. É preciso ir, nada examinar e agarrar a primeira coisa que aparecer.
Gustav Meyrinck: Excerto do romance Le Visage Vert, traduzido pelo doutor Etthofen e Mc Perrenoud. Ed. Emile-Paul Frères, Paris, 1932.
O PONTO PARA ALÉM DO INFINITO
Do Surrealismo ao Realismo Fantástico. - O Ponto Supremo. -Desconfiar das imagens. - A loucura de Georg Cantor. - O yogi e o matemático. - Uma aspiração fundamental do espírito humano. - Um excerto de uma genial novela de Jorge Luis Borges.
Nos capítulos anteriores pretendi dar uma idéia dos possíveis estudos sobre a realidade de outro estado de consciência. Nesse outro estado, se existe, todo o homem possesso do demônio do conhecimento encontrará talvez uma resposta à pergunta seguinte, que ele acaba sempre por pôr a si próprio:
Não haverá um sítio a descobrir, em mim próprio, desde o qual tudo o que me acontece seria imediatamente explicável, um sítio de onde tudo o que vejo, sei ou sinto seria imediatamente decifrado, quer se tratasse do movimento dos astros, da disposição das pétalas de uma flor, dos movimentos da civilização de que faço parte, ou dos mais secretos movimentos do meu coração? Será que essa imensa e louca ambição de compreender, que eu passeio, como que a despeito de mim próprio, através de todas as aventuras da minha vida, não poderia ser, um dia, inteiramente e de uma só vez satisfeita? Será que não existe no homem, em mim próprio, um caminho que conduza ao conhecimento de todas as leis do mundo? Será que não repousa no fundo de mim a chave do conhecimento total? André Breton, no segundo manifesto do Surrealismo, julgava poder definitivamente responder a esta pergunta: Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser vislumbrados contraditoriamente.
É evidente que não pretendo, por minha vez, dar resposta definitiva. Aos métodos e ao aparelho do surrealismo quisemos substituir os métodos mais humildes e o aparelho mais pesado daquilo a que nós chamamos, eu e Bergier, o realismo fantástico. Vouportanto fazer apelo, para estudar este assunto, a vários planos do conhecimento. À tradição esotérica. Às matemáticas de vanguarda. E à literatura moderna insólita. Elaborar um estudo sobre planos diferentes (aqui, o plano do espírito mágico, o plano da inteligência pura e o plano da intuição poética), estabelecer comunicações entre eles, verificar por comparação as verdades contidas em cada fase e fazer finalmente surgir uma hipótese na qual se achem integradas essas verdades, tal é exatamente o nosso método. O nosso volumoso livro hirsuto não é senão um começo de defesa e ilustração desse método.
A frase de André Breton: Tudo leva a crer. . . data de 1930. Teve um êxito extraordinário. Não deixou ainda de ser citada, comentada. É que, de fato, uma das características da atividade do espírito contemporâneo é o interesse crescente pelo que se poderia chamar: o ponto de vista para além do infinito. Este conceito está vivo nas tradições mais antigas, assim como nas matemáticas mais modernas. Ele preenchia o pensamento poético de Valéry, e um dos maiores escritores vivos, o argentino Jorge Luís Borges, consagrou-lhe a sua mais bela e surpreendente novela, dando a esta o título significativo:
O Alepb. Este nome é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Na Cabala, ela designa o En-Sof, o sítio do conhecimento total, o ponto de onde o espírito distingue de um só golpe a totalidade dos fenômenos, das suas causas e dos seus sentidos. Numerosos textos dizem que essa letra tem a forma de um homem que mostra o céu e a Terra, para indicar que o mundo de baixo é o espelho e o mapa do mundo de cima.
O ponto para além do infinito é esse ponto supremo do segundo manifesto do surrealismo, o ponto Ômega do P.e Teilhard de Chardin e a finalidade da Grande Obra dos Alquimistas. Como definir claramente esse conceito? Tentemos. Existe no Universo um ponto, um sítio privilegiado, de onde todo o Universo se desvenda. Nós observamos a criação com instrumentos, telescópios, microscópios, etc. Mas, ali, bastaria ao observador encontrar-se nesse sítio privilegiado: num ápice, o conjunto dos fatos aparecer-lhe-ia, o espaço e o tempo se revelariam na totalidade e a última significação dos seus aspectos.
Para fazer compreender aos alunos do primeiro ano o que poderia ser o conceito de eternidade, o padre jesuíta de um célebre colégio servia-se da seguinte imagem: Imaginai que a Terra seja de bronze e que uma andorinha, de mil em mil anos, a roce com a sua asa. Quando desta forma a Terra tiver desaparecido, só então começará aeternidade. . . Mas a eternidade não é apenas a infinita lentidão do tempo. É outra coisa que a duração. É preciso desconfiarmos das imagens. Servem para transportar a um nível de consciência mais baixo a idéia que não poderia respirar senão noutra altitude e entregam um cadáver no rés-do-chão.
As únicas imagens capazes de transportar uma idéia superior são aquelas que criam um estado de surpresa na consciência, de expatriação, próprias para elevar essa consciência até ao nível onde vive a idéia em questão, onde é possível captá-la na sua frescura na sua força. Os ritos mágicos e a verdadeira poesia não têm outra finalidade. Eis porque não procuraremos dar uma imagem desse conceito do ponto para além do infinito. Será mais eficaz que dirijamos o leitor para o texto mágico e poético de Borges.
Imagem: Jardim labiríntico em homenagem a Jorge Luis Borges, em Veneza (620)
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